segunda-feira, 9 de março de 2009

FORÇA MAIOR

“Vem de antes do sol/ A luz que em tua pupila me desenha./ Aceito amar-me assim/ Refletida no olhar com que me vês.” (Adélia Prado) - Imagem: Google Imagens




AMAMOS PORQUE AMAMOS

Por Veruska Queiroz



Desculpando-me com meus leitores por essa aparição em caráter extraordinário, pois costumo escrever aqui apenas uma vez por semana, decidi, por pura inquietude minha, transformar o que seria apenas uma resposta de e-mail em mais um texto, pois não dá para deixar de notar que o assunto é recorrente e provoca há anos, senão décadas ou séculos calafrios de toda a ordem e muitas, muitas discussões.

Recebi um e-mail muito interessante de uma pessoa dizendo que, após ler meu texto anterior a esse, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, sua cabeça fervilhou em questionamentos e, a certa altura do e-mail, entre outras inteligentíssimas, me fez a célebre (e psicanalítica) pergunta: "Afinal, o que querem as mulheres?" Ele e seu grupo de amigos tem em torno de 45/50 anos, trabalham, são pessoas interessantes, inteligentes, tem uma vida social, emocional e economicamente estável e confortável, alguns com filhos, outros sem, mas não conseguem uma namorada; e não conseguem saber ou definir muito bem o que querem as mulheres quando o assunto é relacionamento.

Bem, para começar não existe uma receita ou uma fórmula mágica de como são os homens que as mulheres querem e também como são as mulheres que os homens querem - e aqui vamos dar menos importância às características físicas, pois a obviedade aqui se repetiria em praticamente todos os casos. Não existe uma medida, exatamente porque o que encanta, desorienta e provoca, ao mesmo tempo, serenidade e febre, alegria e dor, destempero e paz são, desde os primórdios, coisas outras não tão visíveis e quase nunca explicáveis, ou seja, na maioria das vezes, inconscientes. Então, não há regras, não há previsibilidade, não há sins nem nãos, não há razão. Há somente algo que não se explica, não se enquadra, não se entende, não se define; se vive.

E, como se não bastasse essa perspectiva psicanalítica, mulheres e homens são todos diferentes uns dos outros, não existem dois homens ou duas mulheres iguais. Um homem é capaz de gostar, por exemplo, de uma mulher sem muitos atributos físicos, não tão inteligente e culta e outro detestar uma mulher por esses mesmos motivos ou características. Uma mulher pode gostar de um homem porque ele é inteligente, lindo, culto, disponível e elegante, mas outra pode gostar exatamente por causa de características opostas. E ainda há quem goste - não se espantem - dos ditos cafajestes, mulherengos e mentirosos - e aqui não contam, infelizmente, posição social, inteligência, beleza ou cultura, porque esse tipinho está nos mais diversos lugares. Então, o que faz realmente uma pessoa se apaixonar por outra?

Freud nos fala que, as primeiras experiências de uma criança em seus primeiros anos de vida com as figuras parentais - ou com quaisquer figuras que tenham a responsabilidade de cuidar da criança - serão cruciais para determinar o modo como esse sujeito irá se relacionar com suas futuras escolhas amorosas. Essas escolhas futuras derivam de vários sentimentos do sujeito pelas figuras parentais e do modo como esses sentimentos irão se desenvolver, se fixar ou não no psiquismo. Em termos gerais, podemos dizer que há uma íntima ligação entre as condições de uma pessoa para amar e seu comportamento no amor, que decorre da constelação psíquica e de todos os aspectos positivos e negativos que a criança apreende relacionada ao par parental da mais tenra idade. As escolhas amorosas futuras são escolhidas (para ficar claro, esse processo todo é inconsciente), em sua maioria, como substitutos no que diz respeito às representações psíquicas feitas em relação às figuras parentais.

Idealizamos, supervalorizamos a pessoa amada e passamos a considerá-la única e insubstituível, naturalmente. Um parênteses: só para lembrar, um dia também fizemos isso em relação aos pais. Atribuimos a pessoa amada caracteríscticas ideais que nos importam ou nos inspiram e que, na realidade ela não tem, mas essa atribuição é inerente ao ser humano e constitutiva do sujeito quando ele se relaciona. E, porque há uma tendência de todos nós, em certa medida, a essa repetição das representações psíquicas em relação às figuras parentais em nossos relacionamentos adultos, podemos concluir que, a pessoa amada é envolvida com uma multidão de imagens superpostas, cada uma delas carregadas de milhões de sentimentos: de amor  - na medida, em excesso ou faltoso - de ódio, de angústias, de ansiedades, de inseguranças e é fixada inconscientemente através de outra multidão de representações simbólicas, cada uma delas ligadas a um determinado aspecto seu que tenha marcado a outra pessoa em questão, que também terá, por sua vez, outra gama de imagens e representações para lidar.

Em suma, o que faz com que nos apaixonemos por fulano ou fulana e não nos apaixonemos por beltrano ou beltrana é uma série de simbolismos emaranhados e infinitas imagens - simbolismos e imagens, na maioria das vezes, inconscientes - carregados dos mais variados sentimentos e conceituações que pouco tem a ver - embora eles, em certa medida, também defina os padrões - com características pessoais visíveis ou não ou ainda com a beleza do outro ou seu estado civil. Os buracos aqui, para o bem e para o mal se encontram bem mais embaixo do que o cotidiano revela.

“O amado é, pois, primeiramente, uma instância psíquica. Ele é sem dúvida, uma pessoa, mas é primeiramente e sobretudo, essa parte ignorada e inconsciente de nós mesmos.” (J.D.Nasio, 1997)

Nasio ainda nos lembra que somos um ser híbrido portanto e, quando amamos, sempre amamos um ser híbrido também, constituído, ao mesmo tempo, pela pessoa em si, e pela sua presença fantasiada - porque não temos como nos desgrudarmos totalmente, mesmo que façamos análise para o resto da vida, das nossas experiências infantis e de todas as posteriores consequências dessa vivência - e inconsciente em nós.

Em resumo, amamos porque amamos. Amamos porque, pelo menos uma vez na vida, já amamos alguém (o par parental) e a dinâmica psíquica vai desejar que essa experiência se repita. Amamos porque é necessário amar - com tudo de bom e de ruim que isso trás em si mesmo e deixa como herança - porque não podemos fugir de amar, porque o amor em si foi o que nos constituiu, para o bem e para o mal, seja com boas ou más imagens. Amamos porque o amor é o motor de quase todas as transformações.
Amamos porque amamos, sem explicações, entendimentos, sem receita de bolo, sem regras, sem porques e sem padrões estabelecidos. O amor não é feito para ser conceituado, explicado, entendido ou padronizado. O amor é feito para amar. E ponto.


“Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.
Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários[...]
Porque amor não se troca[...]
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.”

(C.Drummond de Andrade, in: As sem-razões do amor, 2005)