segunda-feira, 11 de outubro de 2010

"DO PRÍNCIPE AO SIM"

“O amor é a despeito, é além, é sobre, é apesar.”(Artur da Távola) - Imagem: Google Imagens





AMAR SE APRENDE AMANDO

Por Veruska Queiroz



“É preciso entender que união não significa, necessariamente, fusão.
E que amar, "solamente", não basta.
Entre homens e mulheres que acham que o amor é só poesia, tem que haver discernimento, pé no chão, racionalidade. Tem que saber que o amor pode  ser bom, pode durar para sempre, mas sozinho não dá conta do recado. O amor é grande mas não é dois.
É preciso convocar uma turma de sentimentos para amparar esse amor que carrega o ônus da onipotência.”(Artur da Távola)





Ah, o amor!!! Todos os seres humanos, alguns durante toda a vida – em fases e etapas ou ininterruptamente, - outros pelo menos alguma vez na vida - para não afligir ou melindrar as almas mais sensíveis (ou talvez àquelas nada sensíveis) – ou mesmo em algum momento específico, seja de carência, de sonho, de desejo ou de solidão já pensou em viver um amor. Grande, pequeno, cotidiano, normal, intenso, mágico, arrebatador ou não, para sempre ou só para um breve momento de alguns dias, meses, algumas horas ou minutos ou apenas uma relação utilitária ou necessária – sim, infelizmente na minha opinião, existem pessoas que vivem assim; o fato é que, encontrar alguém que faça nosso coração bater forte e descompassadamente,  alguém que nos faça revirar os olhos, nos faça cometer loucuras, entrar em transe e ficar o dia inteiro com aquela cara boba e sorridente reconhecida de longe como “o estado apaixonado” ainda parece ser, de longe, um dos desejos mais pungentes da humanidade.

Sim, existem inúmeras variáveis nesse discurso e diversas nuances nessa visão –  e a minha certamente parcial e talvez não tão impessoal assim. Mas, a verdade é que o amor – e a paixão - e tudo o que eles suscitam e envolvem ou colocam a baila para questionamentos percorrem as veias de todos nós, seja de qual forma for. Seja esse sentimento ou estágio de que falei entendido como paixão ou seja o amor – aquele real, que precisa de um aparato de outros para viver, conviver e sobreviver; fato é que esses sentimentos constituem a todos nós e são os motores de quase todas as transformações que conhecemos, tanto em nós mesmos como no mundo de uma forma geral.

Não, não estou falando do ideal do amor romântico. Ou, pelo menos não somente dele ou ainda não de uma única só vertente dentro do ideal do amor romântico, visto que certa dose de idealização é necessária e isso é fato. Em toda relação de amor, sempre idealizaremos(muito ou pouco) aquele que amamos. Sempre iremos atribuir ao nosso parceiro – e ele a nós - alguma qualidade extraordinária que ele não tem – e é esperado que possamos também atribuir a ele – e, de novo, ele a nós - outras tantas que de fato possuimos. Apaixonamo-nos exatamente porque damos ao outro qualidades que imaginamos nos nossos sonhos e devaneios. E isso é bom. Aliás, é inerente ao humano. Se assim não fosse, seríamos terreno árido para a convivência e nenhuma troca afetiva legítima, nenhuma transformação pessoal seriam possíveis – lembremos que somos sempre submetidos ao olhar do outro e atravessados por esse olhar, é através do outro e de seu olhar e desejo que nos (re)conhecemos.

O problema não está, penso eu, nas idealizações, já que elas são inerentes e, de certa forma e em certa medida, necessárias e boas. O problema parece estar exatamente na perspectiva de que, a partir das idealizações, o que encontraremos sempre será só e tão somente a frustração. Frustração essa que vai nos secar por dentro e produzir dores e decepções para todo o sempre tão profundas  que vai nos impossibilitar de lançar bons olhos novamente para as relações, novas ou não. Será mesmo? Será que as idealizações estão somente a esse serviço? E será que uma relação de amor continua sendo de amor se não idealizamos o parceiro? 

Assumindo o risco das frustrações e decepções(muitas ou poucas) oriundas das idealizações(muitas ou poucas) e aprendendo a administrá-las dentro de um espectro de acordos conscientes ou não, também ganhamos a perspectiva de sermos transformados exatamente por essas mesmas idealizações. Esse é o lado bom e isso pode ser profundamente engrandecedor. Se o outro idealiza em mim algumas características que provavelmente não tenho e eu abro possibilidades de realizações a partir daí, essa expectativa do outro em mim pode me transformar. O que o outro espera de mim, o que o outro lança sobre mim pode ser a alavanca para verdadeiras e maravilhosas transformações. “Na verdade, mudamos(para melhor ou para pior) sempre graças a algum outro que espera de nós uma mudança(...) Mudamos graças ao amor de quem nos idealiza, e assim nos estimula a mudar.”(Contardo Calligaris, 2004)

É aí que a perspectiva de se aprender a amar amando vai ganhando corpo: é somente no dia a dia, com todas as idealizações e, não obstante algumas frustrações e decepções, mas também com todas as possibilidades de transformações, que o verdadeiro amor nasce e encontra terreno fertilíssimo para se desenvolver, amadurecer e seguir forte e bonito. Jurandir Freire Costa brilhantemente nos “aconselha” em Sem Fraude nem Favor: “Renunciem a serem o Príncipe e a Cinderela, destinados a viverem felizes para sempre e encarem as trapalhadas que vierem.” Eu pediria licença a Jurandir e diria assim: Não vivam sempre como se fossem o Príncipe e a Cinderela destinados a viverem felizes para sempre, pois a vida é um pouco mais real e é preciso se equilibrar diante dos vôos e dos tropeços ou saber levantar depois das quedas, mas não é por isso que a relação deve ser desprovida de beleza e graciosidade - pode ser até mesmo super romântica e felicíssima se soubermos dosar bem a água e o fubá(como dizia minha avó). O Príncipe e a Princesa podem sim - e devem - em meio à vida real, ser muito felizes e divertirem-se muito juntos construindo dia após dia uma relação prazerosa e feliz, de acordo com seus próprios conceitos, parâmetros, paradigmas e dogmas de felicidade e prazer.  

Nessa construção diária o que vemos é que precisamos muito mais que amor somente para que a relação possa se sustentar em bases realmente sólidas. Sim, amor “solamente” não basta. Amor precisa de coragem, boa vontade e boa dose de ousadia para acontecer, para não cair no lugar comum, para passar pelas provas da convivência(tem um dito popular espanhol que diz mais ou menos assim: é preciso saber o que é e como comer juntos umas colheres de sal sem água para valorizar a boa comida e a sobremesa). O amor precisa de coragem, boa vontade e ousadia para aguentar as idealizações(muitas ou poucas), para não esmorecer diante das frustrações(muitas ou poucas) advindas dessas idealizações e para aguentar o próprio sentimento amor com tudo o que ele suscita.

Amor precisa de amor próprio. Amor precisa de respeito, afeto e confiança mútuos e genuínos, precisa de pé no chão – e pé fora dele também. Amor precisa de conversas - conversas sérias, conversas não sérias, conversas boas, muitas conversas. Amor precisa de sinceridade e honestidade inquestionáveis com o outro e principalmente consigo próprio. Amor precisa de retidão de caráter, de ética, de dignidade e de lealdade. Amor precisa de admiração. Amor precisa de comprometimento. Amor precisa de sorrisos largos e gargalhadas soltas. Amor precisa de espontaneidade, de leveza e de autenticidade. Amor precisa de muita afinidade e de sintonia fina. Amor precisa de projetos, planos e sonhos em comuns. Amor precisa de muitas semelhanças e algumas diferenças. Amor precisa de viagem - de carro, de avião, de trem, de navio e até mesmo de viagem sem sair do lugar. Amor precisa de novidades e inovações, mas precisa muitíssimo também da rotina e do cotidiano. Amor precisa de códigos inventados e pactos secretos que só o casal sabe o que significam. Amor precisa de almoxarifado e lixeira. Amor precisa de perdão. Amor precisa de olhar, de toque, de palavra, de boca, de gestos, de sede, de sofreguidão, de urgência, de paz, de inquietude, de poesia e de silêncio. Amor precisa de mãos dadas, abraços apertados, rostos colados e corpos ardendo de desejo. Amor precisa de busca constante. Amor precisa de sol, de água, de luz e de ar fresco. Amor precisa de revisões e renovações. Amor precisa de recriação. Amor precisa de subjetividade e inconsciente. Amor precisa de pele e química. Amor precisa de individualidade, de um pouco daquela solidão boa e necessária, mas precisa muito mais de cumplicidade, de doação, de entrega, de união. Amor precisa de alma. Amor precisa de amizade, de confidências e de segredos juntos. Amor precisa de cuidados, de carinhos e de advinhação. Amor precisa de postura bonita e justa quando as opiniões divergirem ou o sangue esquentar. Amor precisa de aceitação e de tolerância, principalmente de cada um em relação a si mesmo. Quem não aceita as próprias imperfeições e não tem tolerância com as  próprias limitações, provavelmente não saberá como fazer quando o outro se apresentar dessas maneiras. Amor precisa de muitas estórias juntos para se contar a si mesmo. Amor precisa de sabedoria, de elegância, de beleza e sobretudo e irrefutavelmente de inteligência.

Em suma, amor precisa de AMOR. Seja como for - porque ninguém vai poder mesmo fugir às loucuras maravilhosas ou doidivanas que o amor trás em si - se você quiser amar(muito ou pouco, para sempre ou não), saiba que dentre toda a literatura a respeito, dentre todos os seríssimos estudos de pessoas altamente capacitadas e dentre todos os postulados... além, apesar e sobre todas as perspectivas e expectativas, amar ainda se aprende de uma única forma: amando.

sábado, 28 de agosto de 2010

SOU PLURAL

“Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração, assim falava a canção que na América ouvi...”(Milton Nascimento) - Imagem: Google Imagens




É AMIZADE! E DA VERDADEIRA!

Por Veruska Queiroz



“Ah, esse fenômeno instigante, o das amizades que se mantêm independentes da convivência. Amizade anda de mãos dadas com a afinidade. Afinidade é um dos poucos sentimentos que resistem ao tempo e ao depois. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido. Afinidade é não haver tempo mediando a vida. Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças. É conversar no silêncio, tanto nas possibilidades exercidas quanto nas impossibilidade vividas. Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou sem lamentar o tempo de separação. Porque tempo e separação nunca existiram. Foram apenas oportunidades dadas (ou tiradas) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar. E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais a expressão do outro sob a forma ampliada do eu individual aprimorado. Afinidade é um dos combustíveis da amizade. E o mistério da amizade talvez resida no alívio que traz a existência de alguém que nos acolha. Acolher significa receber de bom grado, previamente, sem julgamentos ou resistências. Com os anos, vão se tornando escassas as amizades que atravessaram o terreno íntimo que lhes é próprio sem arranhões e sem mágoas, restando, como fruto, após ingentes experiências humanas e existenciais, apenas (e já é tanto...) a amizade. Amizade é o que resta da amizade. Se o que resta de uma amizade é amizade, então amizade é. Da verdadeira!”(Artur da Távola)


Há alguns dias li um texto lindo sobre amizade. Mais especificamente sobre amizade entre mulheres. Assunto incômodo para alguns, hipócrita para outros, um mero substrato de afirmação disso ou daquilo para os que não acreditam nem em si mesmos e ainda um assunto que cheira à falsidade, rivalidade e competição para quem talvez – e lamentavelmente na minha opinião - nunca tenha tido uma amizade verdadeira. Não posso falar sobre essas considerações ou pontuações e muito menos lançar juízo de valor sobre quem as defende, exatamente porque minhas experiências - salvo raríssimas exceções que se mostraram débeis, frágeis e, por isso mesmo, passaram como passa o tempo - foram e são muito bonitas e enriquecedoras. Fico, então, com o que essas minhas experiências e todas as minhas vivências nesse sentido me deram, ou seja, os laços de amizade e amor entre mulheres existem, são fortes, verdadeiros, capazes de irromper o tempo, a distância e o espaço, nos fazem mais conscientes de quem somos e de quem é o outro e trazem consigo imensos aprendizados, enormes alegrias, uma paz docemente reconfortante e uma felicidade indescritível.

Talvez minha vontade de falar sobre esse assunto que me toca o coração de verdade venha da imensa saudade que já há algum tempinho sinto de todas as minhas amigas que a vida se encarregou de “espalhar” por aí. Amigas de infância e adolescência, crescendo juntas, aprendendo juntas, estudando juntas no mesmo colégio por anos, fazendo ballet, jazz e sapateado juntas; com sonhos, experiências, projetos e realidades semelhantes, frequentando os mesmos ambientes sociais e culturais numa cidade charmosíssima do interior... com essas amigas lindas já caminho há 33 anos. Outras amigas chegaram quando também chegou minha vontade irrefreável de voar mais alto e por novas paisagens, de experimentar novos sabores, ver novas cores, atrelar minha alma a outras novas almas para agregar novos aprendizados àqueles que continuavam sendo regados sempre, me fazendo crescer constantemente... essas amizades já são cultivadas há 19, 20 anos. Nesse meio tempo, num outro jardim nasciam duas florzinhas que seriam outros dos meus grandes amores para a vida toda: a primeira floresceu há 18 anos e a segunda há 16 e com essas duas, para minha felicidade, veio junto a semente linda e forte que as gerou. Nessa mesma estrada, alguns quilômetros adiante, uma amiga também chegou falando de coisas lindas em dias gelados junto à lareira e há 14 anos acredito de verdade em anjos e querubins. Ainda outras amigas fizeram paragem no exato momento em que algumas mudanças - mesmo temporárias - se fizeram necessárias e, com elas também aprendo a ser melhor a cada dia, há 9 anos. E ainda há minha amiga-irmã/irmã-amiga que ganhei de presente antes mesmo de me saber um ser nessa viagem linda de viver e que, mesmo longe geograficamente permanece sempre perto através da presença em forma de amor, palavras lindas, apoio e afeto genuínos. Também não posso esquecer-me de todas aquelas amizades lindas, sinceras e enriquecedoras que chegam e vão embora ao sabor do vento ou chegam e permanecem durante um tempo determinado - porque tem mesmo de ser assim - com algumas missões que só compreenderemos mais tarde e deixam um rastro, principalmente, de ensinamento, beleza e crescimento. Também há aquelas que não são propriamente amizades no início e vão conquistando seu espaço com beleza, elegância, retidão de caráter, ética, brilho nos olhos, pureza de alma e de coração, sensibilidade e sinceridade. Aos poucos, o que era companhia eventual de uma ou outra vivência, se transforma também na mais bela e verdadeira amizade. Tenho me surpreendido lindamente com pessoas assim. E devo dizer que sou extremamente agradecida à vida e sou mesmo uma pessoa de muita sorte e privilegiada nesse sentido - algumas pessoas chamam isso de merecimento... vai saber...

Sim, tenho amigas verdadeiras e lindas. De todas as idades, de todos os lugares. O número exato do tamanho do meu amor, da minha devoção, do meu afeto, da minha inquietude, das minhas perguntas e respostas, das minhas imperfeiçoes, da minha lucidez, do meu silêncio e do meu grito, das minhas certezas e dúvidas, das minhas convicções e aprendizados, da minha loucura e da minha mais plena felicidade. E elas ocupam lugares especiais em meu coração. Lugares trabalhados, lugares conquistados, lugares cheios de muitas coisas vividas e compartilhadas... muitas alegrias, muitas risadas, muitas descobertas, sofrimentos divididos, angústias partilhadas, derrotas consoladas, vitórias aplaudidas, joelhos esfolados, corações partidos e recuperados, amores conquistados, sufocos em dias de prova, diante das peraltices da juventude ou diante daquela gravidez não programada que trouxe o amadurecimento para todas mais cedo do que o previsto, ansiedade nos dias daquelas festas, coração aos pulos diante das saídas, aniversários e bailes de reveillon. Liberdade e tranquilidade para expor as fraquezas e chorar, firmeza amorosa para os puxões de orelhas, generosidade para perceber as falhas e delicadeza, sensibilidade e sabedoria para apontá-las, compreensão dos erros, reconhecimento das qualidades e elogios sinceros. Expectativa da aprovação do vestibular, acompanhamento dos longos anos de sorrisos e lágrimas desse percurso e a felicidade das formaturas. Participação ativa e constante da vida profissional umas das outras, das realizações pessoais, do crescimento emocional, do aprimoramento espiritual, dos vários relacionamentos que começam e terminam e daqueles que chegam para ficar, dos casamentos, dos nascimentos e crescimento dos filhos, das separações e até das novas uniões em seus novos formatos, ou não. Ombro nas decepções e mazelas da vida, as quais, muitas vezes não escapamos; apoio nos momentos de dúvida, amparo nos momentos de dor, palavras e gestos nos momentos de solidão, colo nos momentos de crise existencial, compreensão nos momentos de insensatez, olhos brilhando, sorrisos e flores nos momentos de felicidade e aquela presença linda que, mesmo na ausência física diz: “eu sou sua amiga e estou com você e ao seu lado para tudo e para sempre e você pode contar sempre comigo.”

Não precisamos nos falar sempre, não precisamos cumprir nenhum ritual e não precisamos de comprovação de lealdade porque ela existe por si só como direção, causa e consequência dos próprios códigos da amizade. Não precisamos provar isso ou aquilo nem a nós mesmas nem a ninguém e não precisamos testar nosso legítimo afeto em nenhuma prova de fogo. Não temos motivos para competirmos umas com as outras, não encontramos sentido em nos rivalizarmos, não barganhamos sentimentos, não esfarelamo-nos em disputas e não temos absolutamente nenhum motivo para invejar-nos, pois entendemos a falta de maturidade e, não raro, a falta de inteligência e elegância que essa postura elucida e, principalmente, entendemos que cada vida é unica e belíssima em sua singularidade - cada pessoa tem suas metas, desejos, ambições e sonhos e, mesmo que alguns deles, às vezes, possam se assemelhar, essas são nuances imensuráveis e, por isso mesmo, fogem a qualquer inserção da inveja e de sua natureza vil e destrutiva. Não conseguimos entender - e certamente é motivo para um rompimento definitivo - a furada de olho, a puxada de tapete, o disse que me disse, a leviandade e a falta de comprometimento com a relação e com tudo o que diz respeito a ela e, evidentemente, compreendemos menos ainda o veneno ácido - às vezes lançado de forma sutil e velada, o que lhe garante o posto de imensamente mais repugnante, naturalmente - que faz proliferar o lodo fétido ao redor de quem o detém. Não admitimos, repudiamos e não perdoamos em hipótese nenhuma a falta de caráter, a deslealdade, a traição, a falta de escrúpulos e de ética e, decididamente, não conseguimos (con)viver com sorrisos amarelos, armaduras, escudos, dentes e garras afiados e espadas e lanças nas mãos. Não há densidade, não há cansaço, não há preguiça, não há nós e correntes, não há julgamentos, não há resistências, não há medos, não há sobresaltos, não há ataques nem defesas, não há manipulações, não há infantilidades mal resolvidas nem vitimizações pueris... não há senãos. Há somente e tanto, a amizade verdadeira. Somos amigas e isso preenche todos os espaços, lacunas, pensamentos, sentimentos e ações a despeito do tempo, das distâncias, dos adiamentos, das diferenças e semelhanças, do caminho seguido e de tudo o que aconteceu, acontece ou possa vir a acontecer nesse caminho.

Somos amigas não somente porque crescemos juntas ou coisa parecida, porque tivemos ou temos interesses ou atividades em comum; ou por termos níveis sociais e/ou econômicos e/ou culturais semelhantes ou porque as pessoas física e psiquicamente saudáveis tendem, de certa forma e em certa medida, a criar laços de afeto com seus semelhantes. Algumas dessas características isoladas ou mesmo todas elas juntas seriam absolutamente insuficientes para justificar o surgimento e, principalmente a manutenção da amizade entre mulheres e, não obstante, de uma natureza extremamente empobrecida. E, o mais importante, ainda não explicariam porque algumas mulheres tem e mantém suas amizades com outras mulheres e outras simplesmente não conseguem isso, a despeito de todo esforço que façam, às vezes, ao longo de uma vida inteira. Penso que a amizade ou não entre mulheres ou ainda, a facilidade ou dificuldade de algumas mulheres em fazerem e manterem amizades com outras mulheres se deem por uma série de razões mais ou menos entrelaçadas e interligadas, mas, certamente, uma das direções mais notáveis aponta para o fato de que somos amigas de outras mulheres porque aprendemos a amar, a aceitar sermos amadas e não temos porque ter medos, defesas, reservas, distâncias e desconfianças desse amor.

Numa perspectiva psicanalítica, poderíamos nos enveredar pelas questões e equações da afetividade, da feminilidade e da grande questão edípica. Sabemos que falar em feminilidade é falar também em falta, em desamparo e para que a feminilidade irrompa para além do “seu lugar” é necessário que ela arrisque movimentos para não sabe-se onde, que não haja uma "obsessão' em evitar a castração para que se possa aceitar correr o risco de esbarrar na angústia, deixar-se afetar e ir mais além. Na íntima relação entre feminilidade, castração e afetividade algumas mulheres simplesmente não conseguem esse “ir mais além”, pois o enfrentamento da extrema angústia que a castração traz em si não se faz possível. Em relação à castração, a mulher fica diante da inscrição indelével de uma perda que já se realizou e sua batalha – para algumas, muitas vezes já perdida – é reconhecer-se a si mesma. Para confrontar o desafio de torna-se mulher é imperativo elaborar simbolicamente o verdadeiro sentido de sua castração e poder assumi-lo. Dessa forma, a castração passa a ser vislumbrada como promessa quando a menina/mulher descobre, numa figura feminina - seja da mãe ou de quem cumpre sua função - um ideal de ego, com o qual possa se identificar. Quando evitar a castração é a única forma possível de se viver, a alteridade fica extremamente comprometida e não há a possibilidade desse atravessamento, desse reconhecimento de si mesma como mulher e, conseqüentemente, há impossibilidade de reconhecimento do outro e mais ainda, de uma outra mulher. Daí ser também impossível uma amizade verdadeira com outra mulher, pois um dos aspectos para os quais aponta a castração é exatamente a aceitação ou não da superioridade de uma rival (a mãe ou quem a representava) e a identificação posterior com ela. A afetividade, então, é deslocada ou transformada e, dessa forma, na vida adulta, pode ser que essa mulher, efetivamente não consiga nunca criar laços profundos, verdadeiros e duradouros com nenhuma mulher.
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P.S.: A todas as minhas amigas verdadeiras, lindas e inigualáveis!!! Amo todas vocês!!!
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"A gente não faz amigos, reconhece-os."
(Garth Henrichs)

domingo, 28 de março de 2010

LIMPEZA DE CHAMINÉ.

“Procuro uma palavra que me salve(...) Toda palavra deve ser anunciada e ouvida(...) Toda palavra é bem dita e bem vinda.”(Viviane Mosé) - Imagem: Getty Images




A MAGIA DA PALAVRA


Por Veruska Queiroz



“E Marcelo continuou pensando: ‘Pois é, está tudo errado! Bola é bola porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também agora eu só vou falar assim(...) O pai de Marcelo resolveu conversar com ele: -- Marcelo, todas as coisas tem um nome. E todo mundo tem que chamar pelo mesmo nome porque, senão, ninguém se entende... –Não acho papai. Por que é que eu não posso inventar o nome das coisas?” (Ruth Rocha, in: Marcelo, marmelo, martelo, 1978)

É engraçado... Se não me falha a memória, eu devo ter lido esse livro na época da alfabetização e nunca mais me esqueci dele. Adorei aquela coisa toda das trocas das palavras. Para mim, tal como para o personagem, fazia total sentido as palavras possuirem outros nomes mais 'adequados'. Ficou em mim a fascinação por esse mundo das letrinhas e até hoje, às vezes, me pego rindo sozinha imaginado como seria se pudéssemos mesmo viver trocando as palavras ao nosso bel prazer como o Marcelo do livro. Também foi por causa das palavras – derivadas da falta de compreensão, segundo ele mesmo - que o pobrezinho do Pequeno Príncipe (1991) se decepcionou tanto com as pessoas grandes: “Mostrei minha obra prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo. Respondera-me: ‘Por que é que um chapéu faria medo?’ Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jibóia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações.”

A palavra marca a efetiva entrada do sujeito no mundo da linguagem e consequentemente no mundo da cultura, embora desde o nascimento e mesmo antes dele essa inserção já aconteça, de certa forma. É através das palavras, na grande maioria dos casos, que escutamos as vozes daqueles que primeiro iremos amar e de todos com os quais iremos formar vínculos e conviver. É através das palavras que começamos a perceber o mundo a nossa volta, adquirindo habilidade e treinando nosso discernimento em relação às regras, normas, leis e limites nossos e do outro. A palavra nos situa, nos diz quem somos e quem é o outro. A palavra nos lança ao olhar e ao desejo do outro. A palavra marca a diferença. A palavra tem uma dimensão tentadora, tem o poder de encantar, enfeitiçar e seduzir. A palavra nos coloca no centro ou à margem. Palavras são o meio universal de comunicarmos nossas intenções, nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossas alegrias, nossas dores e é através dela que estamos o tempo todo nos influenciando uns aos outros. Freud em suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”(1996[1915-1916], vol XV) já dizia: “Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista(...) As palavras, originalmente eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles.” Em suma, a palavra não somente diz sobre as coisas, mas também as transformam. As crianças, os poetas e as bruxas de outrora (e as de hoje também, porque não?) sabem muito bem disso.

As crianças sabem que ao simples pronunciar da palavra “Pirlimpimpim” a mágica é feita e de cartolas pretas saem coelhos, rosas brancas viram lindas pombas e a ajudante do mágico é cortada em duas ou três partes para depois aparecer inteira do outro lado. A um simples “Abre-te Sésamo” uma montanha mágica se abre e lá está o tesouro. A palavra, para a criança, permite que uma série de representações do mundo real e da fantasia sejam elaboradas no sentido de sua própria constituição como sujeito. Já para os poetas, as palavras são o corpo e a alma de seus pensamentos e sentimentos. É através das palavras e por causa delas que o poeta existe e existe sua poesia. As palavras de um poeta são sua expressão máxima, o nascimento e perpetuação de sua obra e de si mesmo. A história não poderia ser contada sem as palavras. Foi também por causa das palavras que milhares de mulheres foram torturadas e mortas na Idade Média, acusadas de bruxaria, pois, para criá-la, segundo a crença que a teoriza, bastava falar. As bruxarias eram feitas e consumadas pelo poder das palavras. No livro “O Martelo das Feiticeiras” (2004), os inquisidores medievais e autores do livro H.Kramer e J.Sprenger escrevem: “pela força terrível de suas palavras mágicas, como por um gole de veneno, conseguem destruir a vida.”

Toda palavra carrega uma maravilha e, ao mesmo tempo, um estranhamento, pois ela tem em si o poder de dizer aquilo que se pretende e também outra coisa que não aquilo que comumente se entende. Ela pode nomear o que sabemos e ao mesmo tempo o que não sabemos ou o que nem se pode dizer ou ainda o que nem ao menos queremos saber, sabendo ou não. É com palavras que criamos nosso mundo, convivemos, dizemos o que estamos pensando, sentindo e o que queremos ou não em dado instante. Exceto no setting analítico, é preciso muito cuidado com as palavras. A palavra certa ou errada, dita desse ou daquele modo é capaz de mudar sozinha, em segundos, tudo a sua volta. A palavra, como tudo o que existe tem e gera energia. A palavra cria. A palavra enaltece. A palavra fere. A palavra fortalece. A palavra destrói. A palavra ensina. A palavra constrói. A palavra encoraja. A palavra ilumina. A palavra transforma. A palavra cura.

E foi justamente pelas palavras que curam que a psicanálise foi fundada. Em 1895, Freud escreve com J.Breuer, “Estudos sobre a Histeria” propondo o método catártico como um novo tratamento para as doenças mentais. Eram apenas os primeiros passos da psicanálise e muito da teoria, do método e do tratamento ainda seriam estudados e postulados, mas com Anna O.(pseudônimo da mais famosa paciente da psicanálise - Bertha Pappenheim), a cura pela fala ou “talking cure” estava inaugurada. J.Breuer começou o tratamento de Anna O. usando a hipnose. Ao falar sobre as experiências durante a hipnose, frequentemente ela se sentia aliviada dos sintomas. Ela relatava os incidentes perturbadores ocorridos durante o dia e, depois de falar, algumas vezes alegava sentir-se aliviada dos sintomas. Ela se referia às conversas como "Chimney-sweeping" - limpeza de chaminé - ou o que chamou de 'cura pela fala'. Mais tarde, porém, Freud acabou abandonando a hipnose alegando que seus resultados eram pouco satisfatórios e que grande parte dos seus pacientes apresentava resistência ao método. Outra paciente, Emmy Von N. leva Freud a inaugurar um método – a regra fundamental da psicanálise – que seria constitutivo da teoria psicanalítica: o Método da Livre Associação. Freud (1996[ 1893-1895], vol II) escreve: “Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer.” Ao deixar que seus pacientes associassem livremente, Freud encontra a via de acesso ao inconsciente, permitindo que o sujeito atribua um saber sobre seu sintoma, emergido na palavra falada.

Nesse sentido, é através das palavras, quando a fala livre é suscitada, que o sujeito irá implicar-se na direção de seu tratamento e descobrir por si mesmo a sua verdade e seu modo de ser e de atuar no mundo, com mais liberdade para nomear o seu sentido de vida, dando-lhe a direção e o gerenciamento que melhor couber em suas tão particulares conceituações do seu bem viver.
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"A Psicanálise é um método de pesquisa da verdade individual para além dos acontecimentos cuja realidade não tem outro sentido para um sujeito salvo a maneira pela qual ele lhe foi associado e por ela modificado. Através do método de dizer tudo a quem tudo escuta, a capacidade de encontrar-se revela-se a ele e a função simbólica específica da condição humana nele se organiza como linguagem. Essa linguagem, portadora de sentido singular se apresenta diante da escuta única do psicanalista - uma escuta no sentido pleno do termo - e o discurso do analisando se modifica adquirindo um sentido novo aos seus próprios ouvidos. Além das palavras e do discurso que o psicanalista escuta, atrelada a teoria e à técnica, estão a sua percepção e a sua sensibilidade receptiva que permite-lhe entender em vários níveis o sentindo emocional subjacente do seu paciente. Ao promover essa escuta diferenciada ao longo do tratamento, o psicanalista, suscita a verdade do sujeito e, com isso, suscita, ao mesmo tempo, o sujeito e sua verdade. Esse é o caminho pelo qual o sujeito descobrirá, por si mesmo, sua verdade e, a partir daí encontrará seu sentido diante de si mesmo, dos outros e do mundo que o cerca." (Maud Mannoni, 1981; grifos meus)

sábado, 20 de março de 2010

ÚNICO E INSUBSTITUÍVEL

“Quero ser amado por e em tua palavra/ nem sei de outra maneira a não ser esta/ de reconhecer o dom amoroso/ a perfeita maneira de saber-se amado:/ amor na raiz da palavra...”(Carlos Drummond de Andrade) - Imagem: O Beijo - Auguste Rodin/ Google Imagens



PORQUE ERA ELE, PORQUE ERA EU, PORQUE ÉRAMOS NÓS.

Por Veruska Queiroz


“Quem é pois, aquele que eu amo e considero único e insubstituível? É um ser misto, composto, ao mesmo tempo, por essa pessoa viva e definida que se encontra diante de mim e pelo seu duplo interno em mim.”(J.D.Nasio,1997)

Mês passado, a Rede Globo de Televisão exibiu, em sua programação noturna, em horário considerado nobre, um programa inteiro dedicado a melhor entender e tentar desvendar os mistérios da Química do Amor: (http://g1.globo.com/globoreporter/0,,LS0-16627-79481,00.html). A neurociência emerge aqui com suas complicadas equações sobre as ligações dos neurotransmissores, sobre a compatibilidade e sobre todo o ‘ballet” dos hormônios: dopamina, serotonina, norepinefrina, vasopressina, oxitocina, endorfinas e todas as “inas” em atividade no nosso organismo.

Nesse sentido, alguns psicanalistas - penso que os mais conservadores ou em certo descompasso e desalinho com a contemporaneidade - a essa altura, podem querer pedir a minha expulsão do “paraíso” mas penso que, onde há possibilidades de desenvolvimento e aplicação de teorias, pesquisas, ensaios, técnicas e abordagens, independentes de qual campo do saber elas provenham, visando melhor explicar e entender a complexidade humana para que, a partir daí, haja melhores condições físicas e psíquicas futuras para uma qualidade de vida melhor, em todos os aspectos, todas as composições são válidas. Vejo muita arrogância e pretensão de certos campos do saber e de certos profissionais que, além de ultrapassarem o limite da sensatez, vão, inclusive, contra a vários pensamentos do próprio Freud que, em sua genialidade, não hesitava em dizer, por exemplo: “Na verdade, não sou de forma alguma um homem de ciência, nem um observador, nem um experimentador, nem um pensador. Sou, por temperamento, nada mais que um conquistador – um aventureiro, em outras palavras – com toda a curiosidade, ousadia e tenacidade características desse tipo de homem”, em uma carta a W.Fliess, em 1900. Nessa outra consideração, Freud mostra mais claramente o quanto um único campo de atuação não deve se fechar em si mesmo e o quanto é inegável que, um único campo do saber, sozinho e isolado, não dá conta de absolutamente nada: “Os poetas e os filósofos antes de mim descobriram o inconsciente; o que eu descobri foi o método científico pelo qual o inconsciente pode ser estudado.”

Bem, embora eu considere todas as perspectivas dos vários campos de saberes de suma importância, pois sou - ainda que bem modesta - uma legítima convicta discípula de Freud e, portanto, corroboro também com suas considerações nesse sentido; por uma questão de domínio teórico, técnico e contextual, além da grande paixão, vou procurar ater-me aqui ao enfoque psicanalítico das escolhas amorosas de todos nós, tentando elucidar como, porque e, principalmente, o que leva homens e mulheres, a escolherem uma determinada pessoa em especial, no universo de tantas outras, como “foco” – em psicanálise dizemos objeto, e esse não está condicionado à conceituação de objeto do senso comum - do seu amor.

Para tentarmos entender melhor esse assunto que causa grandes discussões científicas-psicanalíticas-filosóficas precisamos fazer um pequeno passeio inicial pelas postulações teóricas de Freud a respeito da importância das experiências infantis para somente depois nos enveredarmos pela vida adulta e as escolhas que faremos aí.

Segundo Freud, os acontecimentos e influências que estão na raiz de todas as doenças neuróticas pertencem não ao momento atual, mas à época da primeira infância e eis porque muitas pessoas também nada sabem sobre eles, muito embora apenas em determinado sentido. Nesse aspecto, ninguém contesta o fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inerradicáveis nas profundezas de nossa mente. Entretanto, ao se procurar averiguar em nossa memória quais as impressões que se destinaram a influenciar-nos até o fim da vida, o resultado é, ou absolutamente nada ou um número relativamente pequeno de recordações isoladas, que são, até certo ponto, freqüentemente de importância duvidosa ou enigmática. Isso significa, em última análise, que há uma realidade do inconsciente, elucidada pelo discurso do sujeito. Destes primeiros anos da infância, portanto, dependerão todo o resto da vida do sujeito. Os primeiros objetos de amor de uma criança são as pessoas que estão ligadas à manutenção das suas funções vitais que servem à finalidade de autopreservação, ou seja, sua alimentação, cuidados e proteção.

Portanto, a primeira escolha do objeto de amor que o sujeito faz recai sobre o modelo parental ou sobre pessoas que o reproduzam, então, de acordo com a psicanálise, a primeira escolha objetal de um ser humano é regularmente incestuosa. Daí irá surgir uma imensa luta e severas proibições para impedir que essa tendência infantil persistente se realize. Constata-se que, na puberdade, quando as pulsões sexuais, pela primeira vez fazem suas exigências com toda a sua força, os velhos objetos incestuosos familiares são retomados mais uma vez e novamente catexizados com a libido. Evidentemente, essas pulsões sexuais jamais deixam de seguir os mais primitivos caminhos e catexizar os objetos da escolha infantil primária com cotas de libido que são agora, muito mais poderosas. Nesse ponto, no entanto, defrontam-se com obstáculos que, nesse meio tempo foram erigidos pela barreira contra o incesto. Em conseqüência se esforçarão por transpor esses objetos que são, na realidade, inadequados e encontrarão um caminho, tão breve quanto possível para outros objetos com os quais, mais tarde, possam levar uma verdadeira vida sexual. Esses novos objetos, de maneira mais ou menos perceptível ou visível ainda serão escolhidos ao que representou psiquicamente para cada um de nós de maneira bem singular, os modelos dos objetos infantis.

Então, a escolha de objeto, que é tão estranhamente condicionada, deriva da fixação da representação dos sentimentos pelas figuras parentais e representam uma das conseqüências dessa fixação. No amor normal, apenas sobrevivem algumas características que revelam, às vezes de maneira inconfundível, o protótipo materno ou paterno da escolha de objeto onde houve o destacamento da libido da mãe ou do pai. Porém, em alguns casos específicos, a libido pode permanecer ligada aos progenitores por tanto tempo que os objetos de amor que serão escolhidos mais tarde terão uma marca indelével e podem facilmente se transformar em substitutos plenamente reconhecíveis das figuras parentais. Desse modo, podemos supor uma íntima ligação entre as condições de um amante para amar e seu comportamento no amor, ou seja, essa ligação decorre da constelação psíquica relacionada ao par parental.

“Aprendemos pela psicanálise, que a noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente, muitas vezes, surge como subdividida em uma série infindável: infindável pelo fato de que cada substituto, não obstante, deixa de proporcionar a satisfação desejada.” (S.Freud, 1996[1910]). Esse substituto, Freud sublinha como o ser que mais amamos. Portanto, para Freud, o amor remete a algo da ordem da repetição das imagos infantis. Em suma e, podemos concordar com Freud e Nasio, a pessoa amada deixa de ser apenas um ser que existe e vive exteriormente, para viver também no interior de nós, como uma presença, um objeto fantasiado que recentra nosso desejo e estrutura a ordem inconsciente. Das duas presenças, a viva e a fantasiada, é a segunda que domina, pois todos os nossos comportamentos, a maioria dos nossos julgamentos e o conjunto dos sentimentos que experimentamos em relação ao amado são rigorosamente determinados pela fantasia, porque irremediavelmente a pessoa amada é primeiramente uma instância psíquica. É precisamente aí que passamos a considerá-la única e insubstituível, pois idealizamos e supervalorizamos a pessoa amada que é envolvida com um emaranhado de imagens superpostas, cada uma delas carregadas de milhões de sentimentos: de amor, de ódio, de angústias, de ansiedades, de inseguranças e é fixada inconscientemente através de outra multidão de representações simbólicas, cada uma delas ligadas a um determinado aspecto seu que tenha marcado a outra pessoa em questão, que também terá, por sua vez, outra gama de imagens e representações para lidar.

Finalmente, segundo J.Lacan, esse é o amor paixão. É o amor como falta, incompletude. É o amor em sua vertente imaginária constituída de signos da ilusão inconsciente, em sua dimensão simbólica como sintoma que se dirige ao Outro e em seu estatuto real como aquilo que não cessa de não se inscrever.

domingo, 14 de março de 2010

OLHARES, VOZES E DEVANEIOS...

“Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim.”(S.Freud) - Imagem: Getty Images



DESEJOS, REPRESENTAÇÕES, IMAGENS E PALAVRAS

Por Veruska Queiroz


Domingo último, dia 07 de março aconteceu no Teatro Kodak, em Hollywood, a 82ª edição do Oscar. Antes da cerimônia de entrega, aliás, bem antes para ser sincera, algo como uma certa ansiedade misturada a um confuso sentimento de não ter feito o dever de casa, tomou conta de alguns bons momentos de meus dias. Esse emaranhado de sensações era precisamente por saber que no ano anterior eu estive em todas as salas de cinema onde os filmes indicados ao Oscar estavam sendo exibidos e o mesmo não havia ocorrido esse ano. E mais, minha leve angústia também sinalizava que esse ano me atrasaria para fazer algo que me causa muita alegria, ou seja, após ver os filmes, poder postar minhas considerações a respeito dos mesmos fazendo, sempre que possível, a aproximação filmes/psicanálise. E foi em conversas riquíssimas durante essa semana que fui questionada sobre a relação direta, se houvesse uma, da psicanálise com o cinema. A partir de então, duas certezas se firmaram: minha paixão por cinema e filmes foi acrescida de novos e maravilhosos estímulos e minha paixão pela psicanálise se afirmou mais uma vez.

Por conta do contexto histórico, por obra do acaso ou por puro e simples percurso natural, no final do século XIX nascem a psicanálise e o cinema como formas, ao mesmo tempo, distintas e semelhantes em suas singularidades, de uma nova articulação entre o universo científico e o universo da fantasia, entre a ciência e a irracionalidade. Em 1900, Freud publica “A Interpretação dos Sonhos” e o cineasta Méliès lança “Cendrillon”. A luta particular de cada um, embora talvez estivessem mais juntos do que imaginavam ou queriam, se dava exatamente na tentativa de realizar essa possível/impossível fusão da ciência com o irracional. Se de um lado estava o cinema aguçando a curiosidade humana com suas novidades tecnológicas e uma proposta inovadora de alargamento da visão no campo da fantasia; de outro, estava a psicanálise propondo perturbadoramente a criação de um olhar para dentro - um olhar científico ao que não operava logicamente.
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A relação de Freud com essa recém chegada - a indústria cinematográfica - foi basicamente de silêncio e críticas. Ao contrário do que se observa atualmente em relação aos psicanalistas, Freud torcia mesmo o nariz para a relação cinema e psicanálise. O silêncio só era rompido quando Freud se colocava a proteger a psicanálise da vulgarização e da banalização em vezes que o cinema procurava aproximar-se dela de alguma forma. Em 1924, Samuel Goldwin, ofereceu grande soma em dinheiro e tentou sem sucesso uma entrevista com Freud sobre a produção de uma grande história de amor fundamentada na psicanálise. Em 1926, Georg.W.Pabst consegue, mesmo com um Freud contrariado, estreiar o filme "Segredos de uma alma", sob a supervisão de Karl Abraham e colaboração de Hans Sachs. Para Freud, a linguagem das imagens cinematográficas seria incapaz de aproximar-se com legitimidade dos conceitos da Psicanálise. Inclusive, ele expõe isso claramente numa carta à Abraham: "O famoso projeto não me agrada(...) Minha principal objeção é que não me parece possível fazer uma apresentação plástica minimamente séria de nossas abstrações" (S.Freud e K.Abraham, 1969). Freud dizia que tinha se dedicado muito para transformar imagens em palavras e não iria, por preço algum, fazer das palavras, imagens. Inclusive, vem corroborar com essa rigidez, sua famosa frase: "sonho é o que o sonhador conta". Alguns estudiosos e psicanalistas dizem que essa tão conhecida oposição radical de Freud às imagens, talvez fosse somente mesmo por não suportar a idéia de ver a psicanálise sendo transformada em campo especulativo sem credibilidade, porque segundo esses mesmos, não há como negar que, pelo menos no campo dos sonhos - por mais que o paciente se utilize das palavras para descrevê-los ou fazer suas considerações - a primeira prerrogativa dos sonhos será sempre a das imagens com as quais o paciente sonhou. Um parênteses: sobre imagens e palavras nesse contexto, a polêmica é grande e como a psicanálise não é um campo de saber fechado e imutável, penso que novas formas de pensar a subjetividade é um desafio instigante e, no mínimo, bem interessante que a contemporaneidade nos oferece.

Bem, mas se Freud absteve-se de qualquer manifestação mais ou menos simpática em relação ao cinema nessa época, o mesmo não ocorreu com outros psicanalistas. Lou Andreas Salomé (amiga e discípula de Freud, mulher de Rilke e amor de Nietzsche) em 1913 escreve: "a técnica cinematográfica é a única que permite uma rapidez de sucessão de imagens que corresponde mais ou menos às nossas faculdades de representação". Apesar de um certo radicalismo de Freud em relação ao cinema, irremediavelmente ele faz com que nos aproximemos muito do mundo cinematográfico quando escreve sobre o sonho. Para Freud o sonho é, entre outras coisas, composto por imagens produzidas pelo inconsciente que contam a história - ainda que alterada pelas palavras - do desejo daquele que sonha.

Exatamente como acontece no sonho, o espectador se envolve na estória ocupando, ora o lugar de observador ora o de atuante. "No sonho e na fantasia, o sonhador é o ator principal, mesmo quando ele está representado por outra pessoa, por meio de mecanismos de identificação e essa dissimulação o leva a escapar à proibição, ocupando sucessivamente o lugar de sujeito e do objeto num enunciado"(A.L.Fernandes, 2005). Renato Mezan, em seu livro "Interfaces da Psicanálise" se refere ao sonho como sendo uma modalidade da satisfação alucinatória do desejo. Segundo ele, por ser o sonho uma realização de desejo e antes, do desejo de ver, ele é como um filme que se desenrola no interior das pálpebras.

Lou Andreas Salomé também afirmou que "o futuro do filme poderá contribuir muito para a nossa constituição psíquica". A incorporação de modelos sociais, culturais, familiares e, principalmente econômicos está, atualmente, intrinsecamente ligada à eficiência do controle social exercido pelos instrumentos e meios de comunicação. De forma não confrontativa, obviamente, o cinema - que é o nosso objeto de discussão aqui - como outros, realiza esse controle através do consumo e da fantasia de se obter determinados objetivos, alcançar determinados modelos, realizar todos os sonhos e principalmente todos os desejos. É como se ao invés de nos projetarmos em uma tela, ela se projetasse sobre nós. Podemos até arriscar a dizer que hoje o cinema não somente contribui, como disse Lou Salomé, mas, muitas vezes, constrói - mesmo que de forma distorcida - a nossa constituição psíquica. O desejo encontra-se então, de certa forma, virado em seu avesso, esmagado e coletivizado.

Pelo fato de o cinema dialogar de maneira tão singular com essa nossa constituição psíquica, penso que cinema e psicanálise podem se encontrar no tempo da fruição do próprio tempo, onde as emoções consigam transitar mais donas de si em suas próprias subjetividades sem que isso precise necessariamente fazer sentido nesse ou naquele outro campo do saber ou do pensar. Claro está que a psicanálise e a cinematografia não coincidem totalmente entre si , pois cada uma dispõe de campos, corpos teóricos e práticas de atuação bem diversas, mas afirmar que há uma completa e abismal diferença entre eles seria negar que um dos campos de atuação da psicanálise incide, muitas vezes, exatamente sobre a fantasia, material inclusive também de trabalho da indústria cinematográfica, que por si só, já se configura um tema de grande fascínio para a psicanálise.