domingo, 28 de março de 2010

LIMPEZA DE CHAMINÉ.

“Procuro uma palavra que me salve(...) Toda palavra deve ser anunciada e ouvida(...) Toda palavra é bem dita e bem vinda.”(Viviane Mosé) - Imagem: Getty Images




A MAGIA DA PALAVRA


Por Veruska Queiroz



“E Marcelo continuou pensando: ‘Pois é, está tudo errado! Bola é bola porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também agora eu só vou falar assim(...) O pai de Marcelo resolveu conversar com ele: -- Marcelo, todas as coisas tem um nome. E todo mundo tem que chamar pelo mesmo nome porque, senão, ninguém se entende... –Não acho papai. Por que é que eu não posso inventar o nome das coisas?” (Ruth Rocha, in: Marcelo, marmelo, martelo, 1978)

É engraçado... Se não me falha a memória, eu devo ter lido esse livro na época da alfabetização e nunca mais me esqueci dele. Adorei aquela coisa toda das trocas das palavras. Para mim, tal como para o personagem, fazia total sentido as palavras possuirem outros nomes mais 'adequados'. Ficou em mim a fascinação por esse mundo das letrinhas e até hoje, às vezes, me pego rindo sozinha imaginado como seria se pudéssemos mesmo viver trocando as palavras ao nosso bel prazer como o Marcelo do livro. Também foi por causa das palavras – derivadas da falta de compreensão, segundo ele mesmo - que o pobrezinho do Pequeno Príncipe (1991) se decepcionou tanto com as pessoas grandes: “Mostrei minha obra prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo. Respondera-me: ‘Por que é que um chapéu faria medo?’ Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jibóia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações.”

A palavra marca a efetiva entrada do sujeito no mundo da linguagem e consequentemente no mundo da cultura, embora desde o nascimento e mesmo antes dele essa inserção já aconteça, de certa forma. É através das palavras, na grande maioria dos casos, que escutamos as vozes daqueles que primeiro iremos amar e de todos com os quais iremos formar vínculos e conviver. É através das palavras que começamos a perceber o mundo a nossa volta, adquirindo habilidade e treinando nosso discernimento em relação às regras, normas, leis e limites nossos e do outro. A palavra nos situa, nos diz quem somos e quem é o outro. A palavra nos lança ao olhar e ao desejo do outro. A palavra marca a diferença. A palavra tem uma dimensão tentadora, tem o poder de encantar, enfeitiçar e seduzir. A palavra nos coloca no centro ou à margem. Palavras são o meio universal de comunicarmos nossas intenções, nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossas alegrias, nossas dores e é através dela que estamos o tempo todo nos influenciando uns aos outros. Freud em suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”(1996[1915-1916], vol XV) já dizia: “Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista(...) As palavras, originalmente eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles.” Em suma, a palavra não somente diz sobre as coisas, mas também as transformam. As crianças, os poetas e as bruxas de outrora (e as de hoje também, porque não?) sabem muito bem disso.

As crianças sabem que ao simples pronunciar da palavra “Pirlimpimpim” a mágica é feita e de cartolas pretas saem coelhos, rosas brancas viram lindas pombas e a ajudante do mágico é cortada em duas ou três partes para depois aparecer inteira do outro lado. A um simples “Abre-te Sésamo” uma montanha mágica se abre e lá está o tesouro. A palavra, para a criança, permite que uma série de representações do mundo real e da fantasia sejam elaboradas no sentido de sua própria constituição como sujeito. Já para os poetas, as palavras são o corpo e a alma de seus pensamentos e sentimentos. É através das palavras e por causa delas que o poeta existe e existe sua poesia. As palavras de um poeta são sua expressão máxima, o nascimento e perpetuação de sua obra e de si mesmo. A história não poderia ser contada sem as palavras. Foi também por causa das palavras que milhares de mulheres foram torturadas e mortas na Idade Média, acusadas de bruxaria, pois, para criá-la, segundo a crença que a teoriza, bastava falar. As bruxarias eram feitas e consumadas pelo poder das palavras. No livro “O Martelo das Feiticeiras” (2004), os inquisidores medievais e autores do livro H.Kramer e J.Sprenger escrevem: “pela força terrível de suas palavras mágicas, como por um gole de veneno, conseguem destruir a vida.”

Toda palavra carrega uma maravilha e, ao mesmo tempo, um estranhamento, pois ela tem em si o poder de dizer aquilo que se pretende e também outra coisa que não aquilo que comumente se entende. Ela pode nomear o que sabemos e ao mesmo tempo o que não sabemos ou o que nem se pode dizer ou ainda o que nem ao menos queremos saber, sabendo ou não. É com palavras que criamos nosso mundo, convivemos, dizemos o que estamos pensando, sentindo e o que queremos ou não em dado instante. Exceto no setting analítico, é preciso muito cuidado com as palavras. A palavra certa ou errada, dita desse ou daquele modo é capaz de mudar sozinha, em segundos, tudo a sua volta. A palavra, como tudo o que existe tem e gera energia. A palavra cria. A palavra enaltece. A palavra fere. A palavra fortalece. A palavra destrói. A palavra ensina. A palavra constrói. A palavra encoraja. A palavra ilumina. A palavra transforma. A palavra cura.

E foi justamente pelas palavras que curam que a psicanálise foi fundada. Em 1895, Freud escreve com J.Breuer, “Estudos sobre a Histeria” propondo o método catártico como um novo tratamento para as doenças mentais. Eram apenas os primeiros passos da psicanálise e muito da teoria, do método e do tratamento ainda seriam estudados e postulados, mas com Anna O.(pseudônimo da mais famosa paciente da psicanálise - Bertha Pappenheim), a cura pela fala ou “talking cure” estava inaugurada. J.Breuer começou o tratamento de Anna O. usando a hipnose. Ao falar sobre as experiências durante a hipnose, frequentemente ela se sentia aliviada dos sintomas. Ela relatava os incidentes perturbadores ocorridos durante o dia e, depois de falar, algumas vezes alegava sentir-se aliviada dos sintomas. Ela se referia às conversas como "Chimney-sweeping" - limpeza de chaminé - ou o que chamou de 'cura pela fala'. Mais tarde, porém, Freud acabou abandonando a hipnose alegando que seus resultados eram pouco satisfatórios e que grande parte dos seus pacientes apresentava resistência ao método. Outra paciente, Emmy Von N. leva Freud a inaugurar um método – a regra fundamental da psicanálise – que seria constitutivo da teoria psicanalítica: o Método da Livre Associação. Freud (1996[ 1893-1895], vol II) escreve: “Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer.” Ao deixar que seus pacientes associassem livremente, Freud encontra a via de acesso ao inconsciente, permitindo que o sujeito atribua um saber sobre seu sintoma, emergido na palavra falada.

Nesse sentido, é através das palavras, quando a fala livre é suscitada, que o sujeito irá implicar-se na direção de seu tratamento e descobrir por si mesmo a sua verdade e seu modo de ser e de atuar no mundo, com mais liberdade para nomear o seu sentido de vida, dando-lhe a direção e o gerenciamento que melhor couber em suas tão particulares conceituações do seu bem viver.
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"A Psicanálise é um método de pesquisa da verdade individual para além dos acontecimentos cuja realidade não tem outro sentido para um sujeito salvo a maneira pela qual ele lhe foi associado e por ela modificado. Através do método de dizer tudo a quem tudo escuta, a capacidade de encontrar-se revela-se a ele e a função simbólica específica da condição humana nele se organiza como linguagem. Essa linguagem, portadora de sentido singular se apresenta diante da escuta única do psicanalista - uma escuta no sentido pleno do termo - e o discurso do analisando se modifica adquirindo um sentido novo aos seus próprios ouvidos. Além das palavras e do discurso que o psicanalista escuta, atrelada a teoria e à técnica, estão a sua percepção e a sua sensibilidade receptiva que permite-lhe entender em vários níveis o sentindo emocional subjacente do seu paciente. Ao promover essa escuta diferenciada ao longo do tratamento, o psicanalista, suscita a verdade do sujeito e, com isso, suscita, ao mesmo tempo, o sujeito e sua verdade. Esse é o caminho pelo qual o sujeito descobrirá, por si mesmo, sua verdade e, a partir daí encontrará seu sentido diante de si mesmo, dos outros e do mundo que o cerca." (Maud Mannoni, 1981; grifos meus)

sábado, 20 de março de 2010

ÚNICO E INSUBSTITUÍVEL

“Quero ser amado por e em tua palavra/ nem sei de outra maneira a não ser esta/ de reconhecer o dom amoroso/ a perfeita maneira de saber-se amado:/ amor na raiz da palavra...”(Carlos Drummond de Andrade) - Imagem: O Beijo - Auguste Rodin/ Google Imagens



PORQUE ERA ELE, PORQUE ERA EU, PORQUE ÉRAMOS NÓS.

Por Veruska Queiroz


“Quem é pois, aquele que eu amo e considero único e insubstituível? É um ser misto, composto, ao mesmo tempo, por essa pessoa viva e definida que se encontra diante de mim e pelo seu duplo interno em mim.”(J.D.Nasio,1997)

Mês passado, a Rede Globo de Televisão exibiu, em sua programação noturna, em horário considerado nobre, um programa inteiro dedicado a melhor entender e tentar desvendar os mistérios da Química do Amor: (http://g1.globo.com/globoreporter/0,,LS0-16627-79481,00.html). A neurociência emerge aqui com suas complicadas equações sobre as ligações dos neurotransmissores, sobre a compatibilidade e sobre todo o ‘ballet” dos hormônios: dopamina, serotonina, norepinefrina, vasopressina, oxitocina, endorfinas e todas as “inas” em atividade no nosso organismo.

Nesse sentido, alguns psicanalistas - penso que os mais conservadores ou em certo descompasso e desalinho com a contemporaneidade - a essa altura, podem querer pedir a minha expulsão do “paraíso” mas penso que, onde há possibilidades de desenvolvimento e aplicação de teorias, pesquisas, ensaios, técnicas e abordagens, independentes de qual campo do saber elas provenham, visando melhor explicar e entender a complexidade humana para que, a partir daí, haja melhores condições físicas e psíquicas futuras para uma qualidade de vida melhor, em todos os aspectos, todas as composições são válidas. Vejo muita arrogância e pretensão de certos campos do saber e de certos profissionais que, além de ultrapassarem o limite da sensatez, vão, inclusive, contra a vários pensamentos do próprio Freud que, em sua genialidade, não hesitava em dizer, por exemplo: “Na verdade, não sou de forma alguma um homem de ciência, nem um observador, nem um experimentador, nem um pensador. Sou, por temperamento, nada mais que um conquistador – um aventureiro, em outras palavras – com toda a curiosidade, ousadia e tenacidade características desse tipo de homem”, em uma carta a W.Fliess, em 1900. Nessa outra consideração, Freud mostra mais claramente o quanto um único campo de atuação não deve se fechar em si mesmo e o quanto é inegável que, um único campo do saber, sozinho e isolado, não dá conta de absolutamente nada: “Os poetas e os filósofos antes de mim descobriram o inconsciente; o que eu descobri foi o método científico pelo qual o inconsciente pode ser estudado.”

Bem, embora eu considere todas as perspectivas dos vários campos de saberes de suma importância, pois sou - ainda que bem modesta - uma legítima convicta discípula de Freud e, portanto, corroboro também com suas considerações nesse sentido; por uma questão de domínio teórico, técnico e contextual, além da grande paixão, vou procurar ater-me aqui ao enfoque psicanalítico das escolhas amorosas de todos nós, tentando elucidar como, porque e, principalmente, o que leva homens e mulheres, a escolherem uma determinada pessoa em especial, no universo de tantas outras, como “foco” – em psicanálise dizemos objeto, e esse não está condicionado à conceituação de objeto do senso comum - do seu amor.

Para tentarmos entender melhor esse assunto que causa grandes discussões científicas-psicanalíticas-filosóficas precisamos fazer um pequeno passeio inicial pelas postulações teóricas de Freud a respeito da importância das experiências infantis para somente depois nos enveredarmos pela vida adulta e as escolhas que faremos aí.

Segundo Freud, os acontecimentos e influências que estão na raiz de todas as doenças neuróticas pertencem não ao momento atual, mas à época da primeira infância e eis porque muitas pessoas também nada sabem sobre eles, muito embora apenas em determinado sentido. Nesse aspecto, ninguém contesta o fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inerradicáveis nas profundezas de nossa mente. Entretanto, ao se procurar averiguar em nossa memória quais as impressões que se destinaram a influenciar-nos até o fim da vida, o resultado é, ou absolutamente nada ou um número relativamente pequeno de recordações isoladas, que são, até certo ponto, freqüentemente de importância duvidosa ou enigmática. Isso significa, em última análise, que há uma realidade do inconsciente, elucidada pelo discurso do sujeito. Destes primeiros anos da infância, portanto, dependerão todo o resto da vida do sujeito. Os primeiros objetos de amor de uma criança são as pessoas que estão ligadas à manutenção das suas funções vitais que servem à finalidade de autopreservação, ou seja, sua alimentação, cuidados e proteção.

Portanto, a primeira escolha do objeto de amor que o sujeito faz recai sobre o modelo parental ou sobre pessoas que o reproduzam, então, de acordo com a psicanálise, a primeira escolha objetal de um ser humano é regularmente incestuosa. Daí irá surgir uma imensa luta e severas proibições para impedir que essa tendência infantil persistente se realize. Constata-se que, na puberdade, quando as pulsões sexuais, pela primeira vez fazem suas exigências com toda a sua força, os velhos objetos incestuosos familiares são retomados mais uma vez e novamente catexizados com a libido. Evidentemente, essas pulsões sexuais jamais deixam de seguir os mais primitivos caminhos e catexizar os objetos da escolha infantil primária com cotas de libido que são agora, muito mais poderosas. Nesse ponto, no entanto, defrontam-se com obstáculos que, nesse meio tempo foram erigidos pela barreira contra o incesto. Em conseqüência se esforçarão por transpor esses objetos que são, na realidade, inadequados e encontrarão um caminho, tão breve quanto possível para outros objetos com os quais, mais tarde, possam levar uma verdadeira vida sexual. Esses novos objetos, de maneira mais ou menos perceptível ou visível ainda serão escolhidos ao que representou psiquicamente para cada um de nós de maneira bem singular, os modelos dos objetos infantis.

Então, a escolha de objeto, que é tão estranhamente condicionada, deriva da fixação da representação dos sentimentos pelas figuras parentais e representam uma das conseqüências dessa fixação. No amor normal, apenas sobrevivem algumas características que revelam, às vezes de maneira inconfundível, o protótipo materno ou paterno da escolha de objeto onde houve o destacamento da libido da mãe ou do pai. Porém, em alguns casos específicos, a libido pode permanecer ligada aos progenitores por tanto tempo que os objetos de amor que serão escolhidos mais tarde terão uma marca indelével e podem facilmente se transformar em substitutos plenamente reconhecíveis das figuras parentais. Desse modo, podemos supor uma íntima ligação entre as condições de um amante para amar e seu comportamento no amor, ou seja, essa ligação decorre da constelação psíquica relacionada ao par parental.

“Aprendemos pela psicanálise, que a noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente, muitas vezes, surge como subdividida em uma série infindável: infindável pelo fato de que cada substituto, não obstante, deixa de proporcionar a satisfação desejada.” (S.Freud, 1996[1910]). Esse substituto, Freud sublinha como o ser que mais amamos. Portanto, para Freud, o amor remete a algo da ordem da repetição das imagos infantis. Em suma e, podemos concordar com Freud e Nasio, a pessoa amada deixa de ser apenas um ser que existe e vive exteriormente, para viver também no interior de nós, como uma presença, um objeto fantasiado que recentra nosso desejo e estrutura a ordem inconsciente. Das duas presenças, a viva e a fantasiada, é a segunda que domina, pois todos os nossos comportamentos, a maioria dos nossos julgamentos e o conjunto dos sentimentos que experimentamos em relação ao amado são rigorosamente determinados pela fantasia, porque irremediavelmente a pessoa amada é primeiramente uma instância psíquica. É precisamente aí que passamos a considerá-la única e insubstituível, pois idealizamos e supervalorizamos a pessoa amada que é envolvida com um emaranhado de imagens superpostas, cada uma delas carregadas de milhões de sentimentos: de amor, de ódio, de angústias, de ansiedades, de inseguranças e é fixada inconscientemente através de outra multidão de representações simbólicas, cada uma delas ligadas a um determinado aspecto seu que tenha marcado a outra pessoa em questão, que também terá, por sua vez, outra gama de imagens e representações para lidar.

Finalmente, segundo J.Lacan, esse é o amor paixão. É o amor como falta, incompletude. É o amor em sua vertente imaginária constituída de signos da ilusão inconsciente, em sua dimensão simbólica como sintoma que se dirige ao Outro e em seu estatuto real como aquilo que não cessa de não se inscrever.

domingo, 14 de março de 2010

OLHARES, VOZES E DEVANEIOS...

“Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim.”(S.Freud) - Imagem: Getty Images



DESEJOS, REPRESENTAÇÕES, IMAGENS E PALAVRAS

Por Veruska Queiroz


Domingo último, dia 07 de março aconteceu no Teatro Kodak, em Hollywood, a 82ª edição do Oscar. Antes da cerimônia de entrega, aliás, bem antes para ser sincera, algo como uma certa ansiedade misturada a um confuso sentimento de não ter feito o dever de casa, tomou conta de alguns bons momentos de meus dias. Esse emaranhado de sensações era precisamente por saber que no ano anterior eu estive em todas as salas de cinema onde os filmes indicados ao Oscar estavam sendo exibidos e o mesmo não havia ocorrido esse ano. E mais, minha leve angústia também sinalizava que esse ano me atrasaria para fazer algo que me causa muita alegria, ou seja, após ver os filmes, poder postar minhas considerações a respeito dos mesmos fazendo, sempre que possível, a aproximação filmes/psicanálise. E foi em conversas riquíssimas durante essa semana que fui questionada sobre a relação direta, se houvesse uma, da psicanálise com o cinema. A partir de então, duas certezas se firmaram: minha paixão por cinema e filmes foi acrescida de novos e maravilhosos estímulos e minha paixão pela psicanálise se afirmou mais uma vez.

Por conta do contexto histórico, por obra do acaso ou por puro e simples percurso natural, no final do século XIX nascem a psicanálise e o cinema como formas, ao mesmo tempo, distintas e semelhantes em suas singularidades, de uma nova articulação entre o universo científico e o universo da fantasia, entre a ciência e a irracionalidade. Em 1900, Freud publica “A Interpretação dos Sonhos” e o cineasta Méliès lança “Cendrillon”. A luta particular de cada um, embora talvez estivessem mais juntos do que imaginavam ou queriam, se dava exatamente na tentativa de realizar essa possível/impossível fusão da ciência com o irracional. Se de um lado estava o cinema aguçando a curiosidade humana com suas novidades tecnológicas e uma proposta inovadora de alargamento da visão no campo da fantasia; de outro, estava a psicanálise propondo perturbadoramente a criação de um olhar para dentro - um olhar científico ao que não operava logicamente.
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A relação de Freud com essa recém chegada - a indústria cinematográfica - foi basicamente de silêncio e críticas. Ao contrário do que se observa atualmente em relação aos psicanalistas, Freud torcia mesmo o nariz para a relação cinema e psicanálise. O silêncio só era rompido quando Freud se colocava a proteger a psicanálise da vulgarização e da banalização em vezes que o cinema procurava aproximar-se dela de alguma forma. Em 1924, Samuel Goldwin, ofereceu grande soma em dinheiro e tentou sem sucesso uma entrevista com Freud sobre a produção de uma grande história de amor fundamentada na psicanálise. Em 1926, Georg.W.Pabst consegue, mesmo com um Freud contrariado, estreiar o filme "Segredos de uma alma", sob a supervisão de Karl Abraham e colaboração de Hans Sachs. Para Freud, a linguagem das imagens cinematográficas seria incapaz de aproximar-se com legitimidade dos conceitos da Psicanálise. Inclusive, ele expõe isso claramente numa carta à Abraham: "O famoso projeto não me agrada(...) Minha principal objeção é que não me parece possível fazer uma apresentação plástica minimamente séria de nossas abstrações" (S.Freud e K.Abraham, 1969). Freud dizia que tinha se dedicado muito para transformar imagens em palavras e não iria, por preço algum, fazer das palavras, imagens. Inclusive, vem corroborar com essa rigidez, sua famosa frase: "sonho é o que o sonhador conta". Alguns estudiosos e psicanalistas dizem que essa tão conhecida oposição radical de Freud às imagens, talvez fosse somente mesmo por não suportar a idéia de ver a psicanálise sendo transformada em campo especulativo sem credibilidade, porque segundo esses mesmos, não há como negar que, pelo menos no campo dos sonhos - por mais que o paciente se utilize das palavras para descrevê-los ou fazer suas considerações - a primeira prerrogativa dos sonhos será sempre a das imagens com as quais o paciente sonhou. Um parênteses: sobre imagens e palavras nesse contexto, a polêmica é grande e como a psicanálise não é um campo de saber fechado e imutável, penso que novas formas de pensar a subjetividade é um desafio instigante e, no mínimo, bem interessante que a contemporaneidade nos oferece.

Bem, mas se Freud absteve-se de qualquer manifestação mais ou menos simpática em relação ao cinema nessa época, o mesmo não ocorreu com outros psicanalistas. Lou Andreas Salomé (amiga e discípula de Freud, mulher de Rilke e amor de Nietzsche) em 1913 escreve: "a técnica cinematográfica é a única que permite uma rapidez de sucessão de imagens que corresponde mais ou menos às nossas faculdades de representação". Apesar de um certo radicalismo de Freud em relação ao cinema, irremediavelmente ele faz com que nos aproximemos muito do mundo cinematográfico quando escreve sobre o sonho. Para Freud o sonho é, entre outras coisas, composto por imagens produzidas pelo inconsciente que contam a história - ainda que alterada pelas palavras - do desejo daquele que sonha.

Exatamente como acontece no sonho, o espectador se envolve na estória ocupando, ora o lugar de observador ora o de atuante. "No sonho e na fantasia, o sonhador é o ator principal, mesmo quando ele está representado por outra pessoa, por meio de mecanismos de identificação e essa dissimulação o leva a escapar à proibição, ocupando sucessivamente o lugar de sujeito e do objeto num enunciado"(A.L.Fernandes, 2005). Renato Mezan, em seu livro "Interfaces da Psicanálise" se refere ao sonho como sendo uma modalidade da satisfação alucinatória do desejo. Segundo ele, por ser o sonho uma realização de desejo e antes, do desejo de ver, ele é como um filme que se desenrola no interior das pálpebras.

Lou Andreas Salomé também afirmou que "o futuro do filme poderá contribuir muito para a nossa constituição psíquica". A incorporação de modelos sociais, culturais, familiares e, principalmente econômicos está, atualmente, intrinsecamente ligada à eficiência do controle social exercido pelos instrumentos e meios de comunicação. De forma não confrontativa, obviamente, o cinema - que é o nosso objeto de discussão aqui - como outros, realiza esse controle através do consumo e da fantasia de se obter determinados objetivos, alcançar determinados modelos, realizar todos os sonhos e principalmente todos os desejos. É como se ao invés de nos projetarmos em uma tela, ela se projetasse sobre nós. Podemos até arriscar a dizer que hoje o cinema não somente contribui, como disse Lou Salomé, mas, muitas vezes, constrói - mesmo que de forma distorcida - a nossa constituição psíquica. O desejo encontra-se então, de certa forma, virado em seu avesso, esmagado e coletivizado.

Pelo fato de o cinema dialogar de maneira tão singular com essa nossa constituição psíquica, penso que cinema e psicanálise podem se encontrar no tempo da fruição do próprio tempo, onde as emoções consigam transitar mais donas de si em suas próprias subjetividades sem que isso precise necessariamente fazer sentido nesse ou naquele outro campo do saber ou do pensar. Claro está que a psicanálise e a cinematografia não coincidem totalmente entre si , pois cada uma dispõe de campos, corpos teóricos e práticas de atuação bem diversas, mas afirmar que há uma completa e abismal diferença entre eles seria negar que um dos campos de atuação da psicanálise incide, muitas vezes, exatamente sobre a fantasia, material inclusive também de trabalho da indústria cinematográfica, que por si só, já se configura um tema de grande fascínio para a psicanálise.