domingo, 20 de dezembro de 2009

TODO DIA É DIA

"Para ganhar um ano novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo(...)É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre." (C.Drummond de Andrade) - Imagem: Google Imagens





FELIZ ANO TODO DIA NOVO!!!
Por Veruska Queiroz



É tempo de falar de resoluções de Ano Novo, não é mesmo?
E o que é ou representa o Ano Novo? Bom, Ano Novo para alguns pode simplesmente ser a passagem de um dia para o outro no calendário. Ok. Como cada pessoa tem, subjetivamente, várias representações de e sobre si mesmo e sobre o mundo, justíssimo esse pensamento. Para outros, no entanto, mesmo que na prática o Ano Novo seja efetivamente somente a passagem de um dia para outro no calendário, ainda assim, há outras tantas representações que tornam essa passagem especial. No imaginário de muitas dessas pessoas perpassa a idéia de que, ao mudar o ano, muitas coisas podem também ser mudadas em perspectiva externa e, principalmente interna. É a hora em que muitas pessoas acreditam que podem tomar um novo fôlego para, senão mudar parcial ou totalmente suas vidas, pelo menos se imbuir de novo ânimo, de mais coragem para continuar seus caminhos ou tentar caminhos novos, se for o caso.

Não farei aqui nenhum discurso ideológico sobre o Ano Novo, isso seria, no mínimo ingênuo. Minha intenção é de apenas tentar considerar as várias perspectivas existentes, suscitar considerações com as quais algumas pessoas talvez nunca tiveram contato e, para meu deleite, me deparar, certamente – o que acho sempre maravilhoso – com outras que jamais supus, porque tudo na vida que imaginarmos pode nos levar a milhares de questões que jamais pensamos e isso significa precisamente – e eu adoro isso também – expansão e evolução; o que gosto muito, porque penso ser justamente aí, a possibilidade de novas visões, de novos insigths, fortalecimento ou mudança de antigos padrões e, consequentemente, crescimento. Voilà!
Bom, mas o que realmente muda com o Ano Novo? E, se muda, onde isso nos leva? Talvez a lugar nenhum e talvez a muitos lugares. Penso que, seja o que for, decididamente, as respostas para essas perguntas e muitas outras só encontrarão voz, eco e significado dentro de cada um. É somente por dentro, de acordo com as próprias experiências, anseios de mudança ou não e expectativas que cada um pode articular e confrontar suas questões, desejos, certezas, dúvidas, suas considerações e perspectivas com milhões de questões que o mundo apresenta e decidir o que fazer com essa imensa salada.

Dito isso, fico imaginando agora que muitas pessoas a essa altura acharão que esse texto não parece passar de um “Manual de como começar seu Ano Novo” ou coisa parecida e descartarão de vez a leitura, usando como justificativa – muitas vezes justa – o fato de que, na verdade, nada muda de um ano para o outro e que esse assunto de “resoluções de fim de ano” é para os sonhadores e românticos. Ainda que eu respeite profundamente e possa achar legitímo, embora triste, que algumas pessoas pensem assim, o fato é que, tirando o lado que parece pouco realista dessa coisa toda de fim de ano, mas ao mesmo tempo, dando-lhe os créditos merecidos, precisamos mesmo, de tempos em tempos, seja em que época for, fazer nossas reavaliações e mudanças. Precisamos fazer um balanço geral da nossa vida de vez em quando: ver quais idéias, sentimentos, conceitos, paradigmas sustentam nossas concepções, filosofias de vida e ações e se elas ainda estão valendo, se ainda estão em sintonia com nós mesmos – sim, porque nós não somos os mesmos durante toda uma vida – e com o mundo que nos cerca ou precisam ser reciclados ou até mesmo mudados. Precisamos ver se aquela velha roupa ainda nos serve, se precisa apenas de umas pequenas reformas ou se precisamos de uma peça nova. Precisamos saber se nossas certezas e dúvidas, acertos e erros, sentimentos, pensamentos e ações de outrora continuam encontrando ressonância com a passagem do tempo que se dá para todos nós e para tudo o que existe. Caso contrário, paramos de crescer e evoluir, nossa inteligência e nossa percepção ficam prejudicadas e ficamos velhos(por dentro e por fora), chatos, deselegantes, cansativos e indesejáveis. Precisamos mesmo, de tempos em tempos, checar se “nossos estoques” estão precisando de reposições, se a poeira precisa ser varrida, se a “nossa casa” está precisando de um pouco de ventilação e sol ou até mesmo de uma mudança mais radical e efetiva. Mudanças são inerentes na vida de todos nós: mudamos de tamanho e de idade. Mudamos de série no colégio, de período na faculdade e de responsabilidades na vida madura. Mudamos de casas, de cidades, de trabalhos e às vezes até de amigos. Mudamos a forma de vestir, de falar e de nos posicionarmos. Mudamos nossas idéias, conceitos, perspectivas, nossos discursos, nossas atitudes e nossa forma de ver e lidar com o outro e com o mundo. Mudamos até de pele e de células. Isso é renovação. Isso é evolução. Isso é vida. Metaforicamente falando, todas essas coisas são como pequenos “Anos Novos” que vão acontecendo todos os dias, todos os meses e todos os anos em nossas vidas, durante nossa vida inteira. Então, mesmo que não seja numa data pré-estabelecida, todos nós precisamos sim fazer essas pausas para reavaliações, reformulações e mudanças de tempos em tempos.

E o que isso precisamente significa? Significa que não importa muito quando, como e quais reavaliações e resoluções serão colocadas em prática. O que importa é a atitude de mudança e renovação. Atitude de vivenciarmos esses pequenos "Anos Novos" em nossa vida. Em relação a nós mesmos, aos outros e a tudo o que nos cerca. Atitude de estarmos em constante reformulação e recriação, de não pararmos, de não nos acomodarmos e de não deixarmos que “nossos estoques” acabem, não deixarmos que “nossa casa” vire um mausoléu escuro e triste cheio de poeira e mofo, que nossa vida vire apenas um retrato bonito em cima do móvel da sala, sem movimento, sem mudança, sem graça e sem vida. O caminhar, às vezes é lento e muitas vezes, difícil e cansativo e cada um de nós terá seu próprio tempo e seu ritmo. Mas se pararmos é quase certo que teremos de lidar com o pior fracasso que nossa alma pode experimentar: a constatação de não sermos um indivíduo em sua plenitude porque não conseguimos sequer fazer talvez a única coisa que depende somente de nós mesmos; a possibilidade de nos vermos interna e emocionalmente fracos e fracassados - o fracasso da própria alma que sucumbiu ao medo, às dúvidas, à covardia e à inércia. Se assim for, mesmo que tenhamos o mundo aos nossos pés em outras esferas, seremos o pior e mais indigno dos derrotados. Mesmo um pequeno progresso é um avanço na direção de alguma mudança e do crescimento. Pequenos riachos se transformam em rios poderosos, mesmo que sua trajetória possa parecer estreita, longa e, aparentemente, sem muita importância. È preciso que continuemos em frente, nos propondo e nos permitindo fazer nossos pequenos “Anos Novos” ao longo de nossa existência.

É bem mais difícil começar de novo se paramos completamente. Então, não desperdicemos as valiosas chances que a vida nos apresenta todos os dias, em vários setores de nossas vidas. Sempre existirá algo que pode ser feito agora mesmo, ainda hoje e, na maioria das vezes, os primeiros passos pelo menos, dependem somente de nós. Pode não ser muito, mas fará com que continuemos no jogo. Corramos, portanto. Daqui a pouco ou amanhã pode ser tarde demais. Façamos com verdadeira vontade e ardor a parte que nos cabe. É somente assim que a vida pode verdadeiramente caminhar, ou seja, cada um precisa, necessariamente, fazer a parte que lhe cabe. Não existe unilateralidade nas relações humanas maduras e saudáveis, em qualquer questão que se possa pensar. Não deixemos que nosso medo ou nossa neurose nos impeça o movimento. Não deixemos que a poeira, a sujeira e o mofo tomem conta de nosso interior, de nosso coração e de tudo o que é verdadeiramente importante para nós. Não permitamos que escaras fétidas se espalhem por nosso corpo e nossa alma pela nossa inércia, por nossas dúvidas ou nossa falta de coragem. Corramos ao ritmo de nosso próprio tempo, mas corramos... E, se por um acaso, não conseguirmos correr, marchemos. Se não conseguirmos marchar, andemos o quanto rápido pudermos. Se não pudermos ir rápido, caminhemos lentamente. Se não conseguirmos caminhar, usemos uma bengala. Mas seja o que e como for, que o Ano Novo de cada um de nós, coincidindo ou não com o Ano Novo do calendário, possa acontecer consistentemente, renovando nossas esperanças, nossas visões, nossos desejos e promovendo nossas reavaliações e realizações no sentido do nosso constante aprimoramento e crescimento. Feliz renovação e feliz recomeço a todos!!! E um super, maravilhoso e feliz Ano Novo!!!

sábado, 19 de dezembro de 2009

TEMPO DE RENASCER

"Esse ano eu quero paz no meu coração/ Quem quiser ter um amigo, que me dê a mão/ O tempo passa e com ele caminhamos todos juntos, sem parar/ nossos passos pelo chão vão ficar/ Marcas do que se foi, sonhos que vamos ter/ como todo dia nasce novo em cada amanhecer..."(Márcio Moura/ Rui Maurity/ José Jorge/ Tavito/ P.S.Valle/ Ribeiro) - Fotomontagem: Acervo Pessoal





BOAS FESTAS E FELIZ ANO NOVO!!!

Por Veruska Queiroz



E mais um ano, mais um ciclo está terminando. Quando alguma coisa termina, duas coisas são possíveis: ou no lugar do que está terminando fica um nada, um lugar vazio ou no máximo ruínas e escombros, por um tempo ou para sempre ou no lugar do que está terminando, algo novo será construído, alguma coisa começará ou recomeçará renovada.

Quando imaginamos que algo está terminando ou terminou quase sempre o que vem a nossa cabeça são imagens de destruição, de desmoronamento, de encerramento, de não mais existência daquilo, de morte, de finalização em seu próprio fim. Sim, uma das vertentes é mesmo essa. Mas há uma outra vertente a que poucos se atentam: o fim de algo pode ser também sua própria reformulação, sua renovação e seu próprio renascimento sem necessariamente seu desaparecimento, sua inexistência. Uma coisa em essência pode não precisar se extinguir para que um determinado fim seja algo factível e real: não derrubamos uma casa quando queremos dar um fim a alguns ou a todos os móveis. Não destruímos e não jogamos fora uma peça de roupa quando queremos acabar com a sujeira. Ao lavarmos a roupa suja estaremos promovendo um determinado fim – que é a sujeira - mas a essência – que é a roupa – será renovada e continuará a existir. Às vezes só precisamos mesmo disso: retirar a sujeira para que a beleza da roupa ressurja e continue a embelezar nossa silhueta.

Assim são nossos dias, que se agrupam em meses e depois em anos.
Penso que o fim de um ano significa isso: a renovação dos dias, das esperanças, dos pensamentos, das ações e dos projetos; a limpeza, a reformulação e o rearranjo das coisas e o renascimento de nós mesmos. E, nós nos preparamos, dessa forma, para um novo ciclo, nos refazemos para darmos novos passos e recomeçarmos nossos caminhos com roupas limpas e renovadas.

Dito isso, agradeço de coração a todos que me acompanharam nesse ano de 2009 aqui no blog. É chegada a hora de encerrar um ciclo para (re)começar outro daqui a pouco, em 2010, com idéias renovadas, com um novo ânimo e com novas perspectivas.
Por isso e pelo extremo respeito e carinho que tenho a todos que leem meus textos, me despeço desse ano de 2009 aqui no blog desejando a todos Boas Festas e um Ano Novo felicíssimo de mto amor, realizações, paz e luz!!!

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

SOU ASSIM...

“Eu não tenho filosofia; tenho sentidos...”(F.Pessoa/A.Caeiro) - Imagem: Google Imagens





SOU COMO NINGUÉM ME FEZ
Por Veruska Queiroz


Sou chegada e partida
Sou rastro e mistério
Sou olhar e coração
Sou alma e sou pele
Sou clareza e confusão
Sou limite e inundação
Sou clave
Sou chave
Sou porta
Sou porão
Sou eu e sou o outro
Sou sozinha e multidão
Sou direito e avesso
Sou o essencial e o adereço
Sou densa e sou pluma
Sou frágil e sou forte
Sou suave e rascante
Sou todos os lados, o sul e o norte
Sou o nó e o laço
Sou a luta e o cansaço
Sou a discórdia e o abraço
Sou sorriso e paetês
Sou choro e vela
Sou ponto e reticências
Sou inteira e incompleta
Sou equilíbrio e desatino
Sou louca e sou santa
Sou menina e sou mulher
Sou aquela que dança e encanta
Sou bailarina e sou palhaço
Sou o arco e o chão
Sou nuvem e poeira
Sou sem eira nem beira
Sou inverno e verão
Sou excesso e escassez
Na medida e sem medidas
Sou loucura e sensatez
Sou o melhor do que conheço
Sou o pior do que temo em conhecer
Sou a morte e o renascer
Sou o sol e sou o fogo
Sou terra e encontro
Sou quem fica e perturba
Sou quem vai e faz falta
Sou pergunta e sou resposta
Sou elástica e estática
Sou alicerce e trepidação
Sou o oceano e o vulcão
Sou aqui e além, o agora e o depois
Sou enigma e transparência
Sou a maldade e a inocência
Sou aço e areia
Sou a fé e a dúvida
Sou água
Sou lava
Sou chuva
Sou a brisa e a tempestade
Sou embaraço e simplicidade
Sou palavra e gestos
Sou para fora
Sou por dentro
Sou o dia e a noite
Sou paragem e sou passagem
Sou o alívio e o açoite
Sou frente e sou verso
Sou o incômodo e a redenção
Sou acolhimento e provocação
Sou ombro e sou ferro em brasa
Sou óleo de rícino e champagne
Do que posso morrer
E pelo que posso viver
Há sempre quem se engane
Sou mestre e aprendiz
Sou da primavera
Sou erva
Sou Hera
Sou aquela que sempre diz
Sou a definição e o indefinível
Sou mutável e inflexível
Sou vil e nobre
Sou ouro e diamantes
Sou prata e cobre
Sou embate e quietude
Sou de perto e de longe
Sou o eterno e a finitude
Sou daqui e de Marte
Sou Vênus
Sou Afrodite
Sou Minerva
Sou Centauro
Sou obra de arte
Sou teimosa e decidida
Sou chocolate e sou pimenta ardida
Vôo alto e sou pé no chão
Sou de salto alto
Ando na contramão
Sou de lua
Sou estrela
De todos os cantos
De mais de mil encantos
De primeira grandeza.
Sou segredo e nudez
Sou voz e mudez
Sou como ninguém me fez.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

QUESTÃO EXISTENCIAL

A ética é a estética de dentro” (Pierre Reverdy) - Imagem: Flickr





A ESTÉTICA E A ELEGÂNCIA DA EXISTÊNCIA

Por Veruska Queiroz


Por uma série de razões (e entendo que a maioria delas são amplamente justificáveis) não se fala em outro assunto nos últimos dias a não ser no “episódio da aluna hostilizada por causa de seu microvestido rosa choque" – e perdoem-me o trocadilho, mas parece que chocou mesmo - ocorrido na Uniban, uma faculdade particular de São Bernardo do Campo-SP, na noite da quinta feira dia 22 de outubro. Motivada por uma intensa reverberação mental que acontecimentos dessa natureza me provoca e por uma grande excitação em voltar a escrever no blog, vou tentar aqui concatenar algumas idéias que tenho a respeito de civilidade, elegância da convivência e estética da existência (essa não totalmente nas mesmas perspectivas do pensamento de Foucault, embora muito perpasse ali) e alinhavá-las, na medida do possível, com algumas linhas de pensamento que são minhas bases de estudo permanente. Só para esclarecer, estética assumirá aqui um contorno mais subjetivo e elaborado, algo mais no âmbito da forma como se colocar no mundo segundo suas próprias definições, que não significa definitivamente aparência e beleza, mesmo que, em certa medida, a serviço do bom senso, essas últimas não possam ser totalmente descredenciadas. Nesse contexto e no presente texto, a estética da existência é pontuada muito mais para focalizar a execrável atitude dos jovens agressores do que propriamente qualquer atitude da aluna agredida.

O terrível acontecimento com a jovem Geyse Arruda, de 20 anos, encontrou repercussão aos quatro ventos e em toda esquina: matérias em todos os jornais e telejornais com repetição maciça dos vídeos gravados pelos estudantes; sociólogos, psicólogos e educadores apresentando suas considerações, jovens indignados, Glória Kalil no Fantástico: “Ela usou roupa de balada na hora errada e acabou massacrada por isso, mas nada justifica a agressão” e até a cantora Wanderléia em um site: “Quando comecei a usar minissaia, há 40 anos, havia preconceito. Mas, hoje em dia, isso é absurdo”. Uma coisa é inegável: esse episódio suscitou alguns questionamentos em cada um, na sociedade em geral e nos faz pensar a todos, porque parece escancarar o óbvio, mesmo que esse esteja escondidérrimo no porão escuro de cada um de nós: há uma constante tensão entre civilidade/códigos morais e sociais e barbárie, encarnada em certa medida, num todo e também em cada indivíduo em particular e, para nosso horror, a distância entre eles pode ser muito curta. O termo “civilidade” vem da palavra “civitas”, que quer dizer cidade. Tem civilidade, portanto, aquele que sabe viver na cidade, em organizações e convenções sociais onde há códigos e regras a serem seguidos. Se esses códigos e regras são justos ou não, normativos ou punitivos, conservadores ou libertinos, certos ou errados, cada um terá suas próprias direções, opiniões e respostas a respeito e posso concordar que muitas das convenções sociais exercem força de exclusão, repressão, moralismo hipócrita e alienação, mas o fato é que conviver em sociedade exige sim educação, respeito, elegância, civilidade e ética.

Por falar em ética, não posso deixar de citar Foucault (1995), com o qual concordo: “A ética é, em primeira e última instância, um modo de relacionamento do indivíduo consigo mesmo. É o cuidado de si. A ética é criação de e a partir da liberdade e o indivíduo é uma obra – obra de si mesmo, obra de arte.” Para Foucault quanto mais o indivíduo desenvolver essa ética, mais consciência terá de si mesmo e maior será a sua “estetização”, portanto, mais abrangente e melhor será também a concepção desse indivíduo sobre a estética da existência de um modo geral e da vida. Penso que essa forma de pensar a ética pessoal estaria desvinculada de qualquer tipo de esteticismo fantasioso e inconsequente: a escolha de uma deteminada forma de vida baseada na estética da existência, não se produz em meio ao nada ou em meio à "cultura do vale tudo", mas num espaço determinado e bem delimitado no qual algumas escolhas são possíveis e outras não são, porque é preciso que estejamos sempre atentos ao amplo leque de posturas e movimentos do tecido social. Dessa forma, a estética da existência, caracterizando o cuidado consigo mesmo e com o outro e nos levando ao exercício constante da transformação da existência, define as condutas e os critérios estéticos e também éticos do bem viver.

Penso que o lamentável e horroroso acontecimento na faculdade de São Bernardo do Campo tenha causado tanta indignação e discussão justamente porque ele violou e violentou essa estética da existência. O que vimos foi uma violência gratuita de jovens – que negligenciaram totalmente o respeito ao outro e os critérios éticos do bem viver, comportando-se como selvagens - contra uma pessoa que decidiu fazer uma escolha, baseada, se pudermos pensar assim, em uma estética da existência que lhe era correta, segundo seus próprios padrões - e que, em tese, não estava agredindo ninguém ou violando nenhuma regra: usar seu vestido curto rosa para ir à aula. Não estou colocando em discussão se a moça estava ou não vestida adequadamente para o local em que ela se encontrava, isso é uma outra questão, embora, pessoalmente eu considere, entre outras coisas, que ela tenha errado sim ao escolher a bendita peça rosa choque. Mas, o fato é que mesmo que alguém não esteja “muito adequado” para essa ou aquela situação ou local, propositadamente ou não, isso não abre precedentes para a barbárie, para os insultos, agressões, discriminações e humilhações. Onde está a civilidade? Onde estão a educação e o respeito, princípios humanos básicos por definição? Onde está a elegância? Lembrei-me de Costanza Pascolato (2009), que em certa medida, para um olhar mais atento e refinado, corrobora em várias nuances com a estética da existência de Foucault: “Freqüentemente confundida com estilo, elegância é, na definição literal, o requinte que distingue a postura correta, o refinamento natural. Elegância é apuro do porte e das maneiras. Tem muito mais a ver com aprimoramento pessoal do que com aparência. Ser elegante é, em última análise, uma questão existencial, de como você pensa sua vida, como se coloca no mundo.”

A disseminação da cultura da permissividade segundo a qual cada um pode fazer e dizer o que bem entender, sem se importar com o espaço e o direito alheios, preconizando assim a falsa idéia de uma forma de vida mais livre e menos “amarrada” aos modelos vigentes de uma cultura com padrões ultrapassados, demonstra, muito pelo contrário, uma falta total de adequação social e uma incapacidade fatal de convivência, pois em última análise, a falta de educação, a selvageria, a agressão, a barbárie, a falta de controle sobre si mesmo e a negligência ao outro em qualquer sentido, são todos fatores de grave desagregação social e, muito antes, de intensa degradação pessoal, como já vimos.

Em suma, uma vez conscientes de que a vida essencialmente é baseada nas relações, temos de ter em mente que os desejos, pensamentos, opiniões, atitudes e modo de viver das outras pessoas são tão válidos quantos os nossos, estejamos nós de acordo com eles ou não e que educação, respeito, civilidade e elegância são conceitos básicos e serão sempre muito bem vindos em qualquer lugar e em qualquer circunstância, não importando se o vestido da pessoa ao lado é curto, mini, longo, feio ou bonito, adequado ou totalmente fora de contexto e nem se ela está na faculdade, em uma “balada” ou até mesmo em uma praia ou em uma festa Black-Tie. É claro que na outra ponta desse complexo mundo humano demasiado humano podemos lembrar da máxima - com a qual concordo - que diz: "Água benta e bom senso não fazem mal a ninguém" e, baseada nessa premissa, penso que devemos, sim, estarmos sempre atentos a nossa aparência, ao que vestimos, ao modo como nos portamos, a nossa conduta e aos nossos atos, em todos os lugares por onde passamos e existe sim, essa e aquela postura mais ou menos adequada a essa ou aquela situação ou local, afinal tudo isso também tem direta relação com a civilidade, com o viver em uma determinada sociedade baseada em certas normas e com o respeito a si mesmo e ao outro. Mas em nome disso jamais pode estar a serviço a agressão, a violência, a selvageria, falta da estética e a falta da elegância da existência.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

SINAL DOS NOVOS TEMPOS

“Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir”. (Michel Foucault) - Imagem: Corbis Images




UM NOVO HOMEM, UMA NOVA MULHER
Por Veruska Queiroz



As transformações econômicas e sócio-culturais da modernidade, a revolução sexual dos anos 6O, os movimentos feministas, a necessidade da revisão de antigos conceitos e da criação de novos padrões e a crise da masculinidade, foram alguns dos fatores que contribuíram para uma reorganização de valores e costumes ao longo dos anos. Também os referenciais simbólicos do masculino e do feminino se reestruturavam e, de modo mais direto, incidiam pontualmente nas identificações e na construção de uma nova identidade sexuada. Nessa perspectiva, levando-se em consideração a pluralidade cultural humana e suas incontáveis formas de expressões, podemos levantar algumas questões: Que ideologias permeiam os discursos masculino e feminino? Qual o novo compasso do homem contemporâneo face à sua própria masculinidade?

No contexto histórico cultural da humanidade, o poder sempre esteve intimamente ligado à masculinidade: seja pela representação do provedor, do machão, do sábio, do caçador corajoso ou do bem sucedido empresário. Os símbolos da condição masculina para projetar esse poder encontram sua representação no prestígio e na força (mesmo essa sendo intelectual) e a rivalidade, a competição e o conflito são o seu corolário. Ser sexualmente ativo e sustentar financeiramente a família, exercendo a autoridade e o poder (quando não a força e a violência física ou psicológica) no meio familiar e no trabalho, eram (ou ainda são) condições básicas para ser considerado um homem. Mas, o que é ser um homem? O que é não ser um homem? O que se espera do homem nos dias atuais? Nesse contexto, assim como Freud perguntou: “O que quer a mulher?”, podemos também indagar: O que quer o homem? Ainda quanto à representação do poder masculino, ele é, sem dúvida, representado de forma unânime e quase soberana pelo seu “órgão máximo”, o pênis, segundo eles próprios. Um parênteses: numa perspectiva psicanalítica, se nos reportássemos às vicissitudes edípicas, a qual não irei me ater aqui por sua extrema complexidade, pênis não é igual a falo (representante, em quaisquer circunstâncias, do poder), mas, no caso dos homens, o falo também está representado pelo pênis e coincide com esse e ele então se torna o centro de onde emana o suposto poder que sustenta teoricamente a nação masculina. (Falo= símbolo de poder/ Pênis= órgão anatômico). O poder, então, é entendido como virilidade, respeitabilidade, irredutibilidade, autoridade, invulnerabilidade, força. Nesse sentido já podemos delinear um grande furo e ver que o feitiço, nesse caso, se vira mesmo contra o feiticeiro: para o homem ser Homem com H maiúsculo segundo o discurso da cultura, ele tem de bancar uma postura idealizada, irreal, heróica e quase sobrenatural que acaba por se tornar dolorosa, pois ele se torna escravo das próprias características que deveriam lhe trazer mais liberdade, já que, nessa linha de raciocínio podemos entender que o poder o faria livre, forte, soberano, dono de si, auto-suficiente e indestrutível e não é isso que acontece.

Mas, como nada continua como antes no castelo de Abrantes, esse antigo papel que os homens desempenhavam e toda a sua conduta e posicionamento perante a sua masculinidade foram à banca rota. Aquele homem de 20, 30, 40 anos atrás que a mãe preparou e as tias do colégio confirmaram já não sabe mais quem é, não sabe o que fazer e está dando murros desajeitados e desesperados no ar. Como nos fala Calligaris (Veja, 03/06/2009), “o homem passou a não saber mais ser Homem”. E para alguns, tristemente, a equação para provar sua masculinidade, poder, força e virilidade ainda continua presa às questões da vida sexual. Pobres criaturas. O papel tradicional dos homens que era o de provedor passou a ser distribuído entre homens e mulheres. As mulheres, a partir da metade do século passado, mesmo aquelas que não tinham como prover o sustento da família já não aceitavam mais ser um objeto de satisfação do companheiro e nem um objeto de adorno ou de decoração dentro de casa, ou ainda somente aquela com a função de cuidar dos filhos, da casa e do “distinto provedor”. Mesmo que ainda houvesse esse provedor, em certa medida, as mulheres começaram a questionar sobre seu lugar de Mulher no mundo e começaram a mudá-lo, ou seja, a Mulher começa a estudar, a trabalhar, a decidir sobre quantos filhos teria, a querer ter prazer sexual, a querer ter companheirismo e dedicação de seus parceiros e a estarem supridas emocional e fisicamente em suas necessidades e desejos de Mulher.

Então, qual seria o Homem que deveria emergir dessa avalanche de transformações? Nolasco (2001) nos aponta uma das muitas direções possíveis: "A 'nova masculinidade' requer, do homem, sensibilidade e acolhimento sem comprometimento da virilidade; assertividade, competição, iniciativa, sem implicar em antigos padrões de poder, controle, agressão ou violência". Podemos, com isso, entender que o homem ou esse 'Novo Homem' está vivendo uma fase de transição: a roupa apertada e velha de machão não serve mais e a nova não ficou pronta. Ele tem de reaprender a se expressar e se masculinizar outra vez, numa nova ordem, sob um novo ponto de vista e com uma nova postura. Ao mesmo tempo, no que diz respeito à mulher, se ela quiser se relacionar com esse 'Novo Homem' e com o que há de melhor na essência masculina, terá que ajudar o homem nesse estágio. Sei que corro o risco de ser queimada na fogueira ou lançada ao limbo, mas penso que, nesse sentido, a mulher precisa dar alguns passinhos para trás: ajudar o homem para também ser ajudada por ele, na medida em que ambos possam crescer juntos, numa nova perspectiva, que não mais aquela da disputa, da competitividade e da rivalidade criada pelos tempos modernos(serão modenos mesmo?). O caminho também não pode ser aquele antigo, representando pelo par submissão/comando, onde o papel submisso cabia à mulher e ao homem era destinada a função de "chefe" de família, de autoridade, de comando. Tanto o homem quanto a mulher precisam de novas direções e diretrizes nesse (re)encontro um com o outro e ambos precisam fazer alguns ajustes. Se o homem precisa rever seu papel de homem e encontrar uma maneira mais atual de ser no mundo, a mulher não fica atrás nesse processo. A mulher também carregou nas tintas em muitos aspectos: exagerou na dose ao afirmar sua independência e tentar provar que está em conformidade com os 'novos tempos'. Deixou escapar a impressão de que o homem não é mais tão necessário - e até em alguns casos, desnecessários mesmo: se precisa ter um carro, faz um curso intensivo de mecânica para não “precisar depender de um homem” caso alguma coisa aconteça; se o encanamento dá problemas, ela que (principalmente se mora sozinha), já comprou um arsenal de ferramentas se mete a tentar consertá-lo; se dobra e se desdobra em múltiplas atividades e funções (mesmo que para isso tenha de ficar exaurida e sem tempo para fazer “coisas de mulherzinhas” tão boas de ser feitas) para provar que é moderna, independente, auto suficiente e tão capaz quanto o homem, tanto profissionalmente e intelectualmente quanto financeiramente. Se deseja prazer, ela usa vibradores; se opta por ser mãe quer produção independente ou recorre a um banco de sêmen. Ufa... Esta mulher, ao contrário de ser vista como uma parceira que pode partilhar com o parceiro uma série de funções e obrigações que antes lhe eram exclusivas e, dessa forma dividir responsabilidades, alegrias, tristezas, sabores e dissabores, é vista como uma rival. Ela não é vista mais como uma companheira a ser cortejada, conquistada, cuidada e protegida (e porque não?), mas uma igual (no sentido masculino de sentir alguém como igual) com quem é preciso competir, disputar, rivalizar, brigar... uma inimiga a ser vencida. E o mais triste nesses casos é que nessa batalha não há vencedores nem vencidos, ambos perdem, e perdem muito. Como cada uma das partes que compõe a relação tem as fatias do bolo que lhes pertecem, no que se refere à mulher, depois da ginástica pesada para treinar sua auto-afirmação e de dar provas de capacidade global, talvez tenha chegado a hora de refluir, de repensar sobre antigas questões acerca de ser Mulher sob um novo prisma para reencontrar e reposicionar sua feminilidade com mais segurança e graciosidade.

Para quem ainda possa querer lançar-me ao limbo, reporto-me ao que Maria Rita Kehl (2000) discute acerca da função fraterna – função essa que adquiriu essa conceituação exatamente pela proposta da igualdade entre os sexos: os parceiros, numa relação de igualdade, como semelhantes, dariam conta, fundamentalmente, de restituírem o narcisismo mútuo. Isso leva a conseqüências problemáticas, uma vez que “irmãozinhos” não transam. Talvez fosse interessante relembrarmos aqui que o desejo é uma das conseqüências da diferença. Se há a igualdade para onde vai o desejo?

Nesse contexto precisamos nos lembrar que, o que precisamente nos causa uma grande dor, também nos liberta, em certa medida: a castração é o calcanhar de Aquiles de todos nós. Nesse contexto, I.Marazina(2005) fala sobre o desejo dizendo que é por isso que precisamos relançá-lo incessantemente, pois vivendo na ilusão da completude, nos decepcionamos quando alcançamos o objeto e o engano é constantemente revelado. Ela ainda sugere que um amor que consiga se sustentar nesse trânsito e na lucidez desse desengano, possa percorrer caminhos com menos exigência e, consequentemente, menos sofrimento.

Em resumo: talvez o homem (e, muitas vezes, a mulher também) em referência ao modelo antigo hegemônico de masculinidade baseado na força, poder e virilidade realmente esteja em crise e em severo declínio, mas é possível que ele consiga sobreviver e reaprender a viver, só que será obrigado a repensar e a reestruturar sua maneira de ser Homem e a lidar com uma nova forma de masculinidade. E talvez a mulher devesse fazer o mesmo no que tange a uma nova maneira de ser Mulher e a lidar com uma nova forma de feminilidade.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

APRENDIZADO E CRESCIMENTO

“Ostra feliz não faz pérolas” (Rubem Alves) - Imagem: Google Imagens




DE DENTRO PRA FORA, DE FORA PRA DENTRO.

Por Veruska Queiroz


Pensei em escrever algo temático e profundo, algo de vezes e vozes, algo de pensar e de quietude, algo de amarelo, dourado e violeta, algo que me fizesse compreender o que ainda não compreendo, que me fizesse calar quando tenho vontade de falar e que me fizesse gritar o que ainda só consigo elaborar no silêncio.
Também pensei em escrever para traduzir minhas alegrias doídas e minhas angústias alegres, palavras não ditas e gritos que jamais deveriam ser gritados. Mas, tal qual aquele dia em que vamos ao nosso analista dizendo que "não temos nada para falar" (só quem faz análise saberá com exatidão do que eu estou falando), minha semana começou com "nada para falar". E, somente para não deixar escapar esse precioso detalhe, são nesses dias em que "não temos nada para falar" que, geralmente, se dão grandes sessões, excelentes insights ou maravilhosos e enriquecidores embates, nesse caso, se não se tratar de uma situação específica de análise. Mais um parênteses: sobre essa coisa de só poder falar sobre algo quem já passou efetivamente por esse mesmo algo ou algo similar que citei acima em relação à analise, Artur da Távola (1986) faz interessantes considerações no texto “Só sabemos o que já sentimos” dizendo que algumas pessoas por serem imaturas, arrogantes, egoístas e covardes acham que podem se meter a saber e a julgar sobre aquilo que nunca sentiram e nunca viveram, quando, na verdade ninguém pode saber o que ainda não sentiu e o que não vivenciou. Como dizia uma amiga, essa é para o dever de casa... Mas, voltando as minhas questões, essa semana nasceu assim para mim: persistia a sensação de que eu não tinha nada para falar, nenhum assunto interessante que eu considerasse consistente para a produção de um texto. E assim as horas irrompiam meu tempo e meu espaço... Algumas pessoas que me conhecem visceral, profunda e verdadeiramente talvez teriam a dizer numa hora dessas - caso fossem perguntadas - que, para quem fala pelos cotovelos como eu, deveria mesmo acontecer de eu sentir, em alguns momentos, que eu não teria nada para falar por ter tanto a dizer... E a coisa toma seu revés: é exatamente por ter tanto a dizer que, às vezes, acho que não tenho nada para falar, me emudeço em mim mesma e as palavras parecem não encontrar saída, porque elas talvez estejam ainda meio desajeitadamente sendo preparadas no compartimento dos sentimentos e das idéias e ainda precisem de um pouco de tempo, de silêncio, de compreensão e de aninhamento. E, se as minhas palavras ainda precisam de um pouco mais de preparo, assim como também ainda precisam de preparo minha carne dura, meu “miolo mole”, minha alma inquieta e meu coração desassossegado, hoje elas estarão se fazendo por outras pessoas...


"...Há impossibilidade de ser além do que se é. No entanto eu me ultrapasso, sou mais do que eu, quase normalmente. Com todo perdão da palavra, eu sou um mistério para mim ...É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei, mas não posso dizer, tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar, não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo... Mas acredito que o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós. E se me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.”
(Clarice Lispector- A Paixão segundo G.H, 1993 e Perto do Coração Selvagem, 1999)


“Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê, quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : ‘Fui eu ?’
Deus sabe, porque o escreveu.”
(Fernando Pessoa – Não sei quantas almas tenho, 2005)


“Tinha vantagem não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado.”
(Adélia Prado – Quero minha mãe, 2005)


“Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.”
(Paulo Leminki – Distraídos Venceremos, 1995)


"Diferente não é quem o pretenda ser. Diferente é quem foi dotado de alguns mais e de alguns menos em hora, momento e lugar errado... Porém, lugar errado para os outros, que riem de inveja de não serem assim. E de medo de não aguentarem, caso um dia venham a ser. O diferente paga sempre o preço de estar -mesmo sem o querer- alterando algo, ameaçando rebanhos, carneiros e pastores. O diferente aguenta no lombo a ira e a inveja do irremediavelmente comum e mediano. E, por causa disso, muitas vezes sofre e chora. Mas, por ser diferente, entende a pobre alma desses seres e segue adiante.
Aliás, adiante é onde sempre está o diferente. Diferente é o que vê mais longe do que o consenso. O que sente antes mesmo dos demais começarem a perceber. Diferente é o que, às vezes, diz sempre na hora de calar. Cala sempre nas horas erradas... E procurando ser, consegue ser muito mais. A alma dos diferentes é feita de uma luz além. A estrela dos diferentes é... diferente! Não mexa com o amor, (com o ódio, com o desprezo e/ou com a indiferença) de um diferente. A menos que você seja suficientemente forte para suportá-los depois"
(Artur da Távola - O Diferente, 1977, Grifos meus)


“Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou não calha.
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a
Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso...”
(Fernando Pessoa – O Guardador de Rebanhos/ XLVI, 2005)

“Para quem o chama de complicado, como explicar que a complexidade é rica? Não ligue portanto para aqueles que defensivamente dizem: ‘Puxa, como você é complicado’. Quem o faz talvez esteja temendo caminhar ao seu lado pelas vias de sua grandeza de espírito, tão grande que o confundiria. É mesmo mais fácil escolher um só caminho e acreditar nele. Mais fácil e mais covarde...
Complicação uma ova! Ali estão as luzes de estrelas de primeira grandeza chamadas inteligência, sensibilidade, percepção aguçada, perspicácia e simplicidade, capaz de ver vários caminhos e não um só. Ali estala (instala? entala?) um tal respeito pela emoção e pela vivência do próximo que, às vezes, tudo se esconde na meia frase, na certeza da impossibilidade de certas explicações, pois há pessoas que nunca as entenderiam e na percepção que não se define em conceitos nem em palavras, pois o que se percebe é o que sintetiza em si mesmo.
Ser complicado é saber exatamente em que ponto e medida o outro não vai poder (jamais) perceber o que está em nós, e não se ofender com ele por isso. Ser complicado é ter força para aguentar o máximo da incompreensão e da injustiça por saber da impossibilidade do outro em se estender, em ser emocionalmente inteligente e forte, sem revidar esse mesmo que o fere.
Ser complicado é, de certa forma, se defender do medo (que depois se transformará em raiva ou ódio e depois em mágoa), quando vislumbrarem tudo (nada?) o que (não) são.
Ser complicado é, enfim, estar aberto para o mundo, conseguir vê-lo e ver as pessoas e todas as circunstâncias da vida sem o ódio e a raiva com que se é visto, por colocar instâncias inteligentes ou sensíveis ou puras demais onde as pessoas querem menos, fazem menos e são menos, por comodismo, fraqueza, covardia ou mesmo burrice.
Ser complicado é aceitar o peso de ser diferente porque capaz de ir além, capaz de lutar por coisas que poucos e raros tem coragem para lutar e, por isso, de ameaçar a ordem, de fazer pensar e, pensando, desarrumar, desconstruir para construir coisas novas, de questionar e, assim forçar respostas e por causa delas rearranjar atitudes, pensamentos e emoções.
Quanto menos inteligente, menos caminhos, menos flexibilidade, menos mudanças, menos alterações da ordem porque mais falsas certezas sobre menos coisas. Portanto, seja complicado e, por consequência, verdadeiramente inteligente: tenha menos certeza sobre muito mais coisas...”
(Artur da Távola - Simplificando a complicação, 1986)

“ O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E, de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascer deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo... (...)
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos.”
(Fernando Pessoa – O Guardador de Rebanhos/ II, 2005)

"O ímpeto de crescer e viver intensamente foi tão forte em mim que não consegui resistir a ele. Enfrentei meus sentimentos. A vida não é racional, ela é louca. E eu não quero viver somente comigo mesma. Quero paixão, prazer e barulho. Quero ouvir música rouca e ver rostos. Quero morder a vida e ser, em certa medida, despedaçada por ela. Eu estava esperando e esta é a hora da expansão, do viver verdadeiro. Todo o resto foi uma preparação. A verdade é que sou inconstante e sempre preciso de estímulos, perguntas e desafios em muitas direções. Fiquei docemente adormecida por alguns séculos e entrei em erupção sem avisar."
(Anais Nïn – Loucura, 1990)


“Por tanto amor, por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz, manso ou feroz
Eu, caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer
Senão o correr da luta
Nada a fazer
Senão esquecer o medo
Abrir o peito à força
Numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim
Nada a temer
Senão o correr da luta
Nada a fazer
Senão esquecer o medo
Abrir o peito à força
Numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim”
(Milton Nascimento – Caçador de mim)

“Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre...”
(Caio Fernando Abreu - Limite Branco, 2007)

"Quanto a mim, tenho que lhes dizer que as estrelas são os olhos de Deus vigiando para que tudo corra bem. Para sempre. E, como se sabe, ‘sempre’ não acaba nunca."
(Clarice Lispector – Fragmentos, 1999)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

CORAGEM E OUSADIA.

"Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com freqüência são também a fonte de nossa força."(S.Freud) - Imagem: Psiconet/ Consultório e Divã de Sigmund Freud



NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM DIVÃ
Por Veruska Queiroz


Bem, primeiramente preciso me desculpar pela ausência na semana passada. Numa outra oportunidade tentarei elaborar algum texto sobre as experiências vividas externa e, principalmente internamente que me levaram, como sempre, a (re)inventar a mim mesma, mesmo num curto – para alguns - período de uma semana. E, por conta disso e de mais um monte de coisas, não coincidentemente claro, fui assistir ontem ao filme “Divã” com direção de José Alvarenga Jr. (o mesmo de “Os Normais”) adaptado da peça homônima, ambos baseados no livro de mesmo nome de Martha Medeiros. Tentando elaborar meus sentimentos e minhas impressões sobre o filme, fiquei pensando se o mesmo entraria somente na categoria de uma comédia, que é o tom que se pretende passar quase o tempo todo (e, diga-se de passagem, cumpre belíssimamente esse papel e as risadas – ótimas risadas - são do começo ao fim) ou poderia ser também um drama, pois, ao telespectador mais perspicaz e sensível, o filme faz pensar sobre o nosso cotidiano, às vezes, tão somente vivido de forma quase automática, onde não paramos para nos perguntar - muitos porque “não podem” - o que realmente nos move, se somos felizes ou não, se está tudo bem mesmo (sem máscaras, meias verdades ou mentiras veladas) com nossa carreira, nosso casamento, nossa relação com nossos filhos, namorados, amigos, etc... Um parênteses: quando digo que muitos “não podem”, não poder aqui assume o sentido de não se dar conta conscientemente "de ver com olhos de enxergar" - como diz o Rubem Alves - o tanto de poeira acumulada e jogada para debaixo do tapete, de não dar conta de parar para fazer honestas reavaliações da própria vida, das reais realizações pessoais e emocionais ou não, dos sonhos verdadeiros da alma. Enfim, sabemos que muitas pessoas vivem com o piloto automático ligado, vivendo uma vida vazia, triste e medíocre por covardia e medo de ter de olhar para dentro e descobrir, muitas vezes, alguns pedaços de pão bolorento e ter de fazer alguma coisa com isso. A estória do filme é leve, poética, divertidíssima e, ao mesmo tempo, é densa e devastadora, embora isso não fique explícito a um olhar mais pragmático e menos atento. Na verdade, para um certo grupo de pessoas - aquelas que, embora precisem, nunca terão coragem suficiente para dar “aquela virada” na própria vida; o filme soa como uma certa libertação e redenção: através dos conflitos e questões existenciais da personagem, há a possibilidade de se confrontar com os próprios fantasmas, mesmo sequer cogitados e jamais confessos e com a possibilidade de se desejar realmente querer ser feliz.

Em meu último texto falei exatamente sobre essa possibilidade da felicidade indicando que, dentre outras coisas importantíssimas, ela seria um componente intrínseco constituída de vários momentos de alegria que cada sujeito pode ou não carregar no íntimo de sua alma e a chave para todo o mistério estaria, portanto, dentro de cada um de nós e que deveríamos, para tanto ter uma dose generosa de ousadia e coragem. Segundo nos aponta a própria experiência de se viver, a felicidade acompanharia o sujeito que aprendeu a conhecer melhor a si mesmo e, por conseqüência, ao outro, e Escolheu (assim mesmo, com letra maiúscula), SER feliz, buscando realizações pessoal e emocional, acima de tudo, com capacidade para amar e trabalhar que, segundo Freud, seriam as duas condições primordiais para o equilíbrio psíquico e a saúde mental.

Mercedes (a maravilhosa Lília Cabral, que também protagonizou a peça e é co-roteirista do filme) é uma mulher “padrão” e "normal", casada com um homem também “padrão” e "normal", artista plástica com recente exposição de suas obras, professora particular de matemática que teve uma bem sucedida carreira, com dois filhos crescidos e no auge dos 40 e alguns anos decide que precisa de auto-conhecimento. Por mais algumas razões desconhecidas para ela a princípio, decide procurar um analista - daí o título do filme (antes também do livro e da peça). Mercedes resolve se (re)inventar (lembram que eu disse no início do texto que não era por coincidência que eu havia ido assistir ao filme?), embora tenha “certeza” de que esteja tudo bem com sua vida, afinal, pensava ela, ela tinha o que a grande maioria “normal” das pessoas - que, não raro se acomodam e fingem ser felizes - tem ou desejam: nenhuma grande tragédia na vida, uma situação vivencial aparentemente estável em alguns aspectos, um bom marido que era também um bom pai e um bom homem, sexo mais ou menos bom, mais ou menos muito de vez em quando (em alguns casos, na vida real, sexo pode até não existir), filhos com saúde, "bem criados" e aparentemente sem problemas, realização profissional, uma boa casa, grana... O que mais uma pessoa poderia querer? O que estaria errado? Essas são algumas das questões que o filme traz à tona e é aí que ele se desenrola.

Retomando novamente meu último texto, querer (que no exposto acima está mais ligado à necessidade) é diferente de desejo, dentro da perspectiva psicanalítica, como já vimos. No caso do filme, "desejo" talvez possa ser traduzido com a ida da personagem por conta própria ao analista, tendo coragem de olhar com honestidade para si mesma e para sua vida que não a fazia feliz e pelas mudanças que, a partir disso, ela assumiu - com muita dignidade - fazer. O "desejo" é de ordem puramente psíquica e subjetiva e aqui lembro-me do Contardo num texto em que já o citei “Você quer mesmo ser feliz?” onde ele traz a questão de que “algumas pessoas nem sempre querem aquilo que desejam” (Contardo Calligaris, 2008), mesmo que isso lhes custem o preço mais alto de uma existência: a prisão da alma, a triste e dolorida condição de não se ter coragem suficiente para desbravar as próprias trilhas internas, romper com o que está falido há tempos e buscar a si mesmo e a felicidade, seja ela o que for, quem for, como for e onde estiver. O que a corajosa Mercedes faz é ir ao e de encontro a si mesma, (re)descobrindo-se, (re)inventando-se, libertando-se, criando possibilidades mais honestas - e por isso mais verdadeiras e belas - de sentir-se de verdade, de ser feliz de verdade, de viver de verdade. A verdadeira estória dela, se fosse real (se bem que podemos reconhecer várias pessoas que conhecemos na pele da personagem) começaria, na realidade, penso eu, quando o filme termina, pois, repetidamente citando Fernando Pessoa (2005): “A felicidade surge de um desassossego da alma.”  A atitude do sossego e do repouso - principalmente sobre si mesmo, sobre o outro e sobre uma vida que se imagina confortável - pode até ter, em certa medida, suposta e ilusoriamente alguns ingrediente do que se quer - a todo custo - chamar felicidade, mas é tão somente máscara para esconder o feio e deformado, além de ser também repugnantemente covarde e triste, muito triste . E o pior, com o passar do tempo - e se se exceder só um pouquinho além da medida (onde a maioria finge não perceber e não ver), acaba por criar irreversíveis escaras... grandes, feias, sujas e fétidas escaras.

“(...)Eu prefiro na chuva caminhar
que, em dias tristes, em casa me esconder.
Prefiro ser feliz, embora louco,
que me conformidade viver.”
(Martin Luther King, 1963)


Ser feliz de verdade implica arriscar, mudar, transformar, se (re)criar, se (re)inventar, alterar a ordem, trilhar matas virgens da alma e novos caminhos. Implica novas posturas, novas formas de ser e estar no mundo. Implica coragem e ousadia. Se não temos isso, temos muito pouco ou nada. E, para nos (re)inventarmos, nos (re)criarmos e promovermos uma verdadeira transformação, na direção de mais respeito, comprometimento e cuidado com a própria vida, não podemos fechar nossos olhos nem tapar nossos ouvidos. Não podemos nos esconder atrás do conveniente e confortável, não podemos barganhar a própria vida, não podemos vender nossa dignidade, não podemos nos repousar sobre nós mesmos e o que é pior, sobre um outro ou sobre uma situação. Não podemos deixar que as escaras fétidas tomem conta de sua alma. Ao contrário, faz-se necessário termos coragem, ousadia e hombridade para nos embriagarmos de vida, de movimento, de desassossego, de transformação, de alegria, de louca felicidade íntima. Daí temos que ser feliz - segundo o parâmentro de felicidade de cada um - depende unicamente de nós, pois a felicidade - ou a alegria, como queiram - como é intrínseca, é uma escolha. Ela não é um destino, ela é o caminho. E escolha implica comprometimento e responsabilidade. Comprometimento e responsabilidade conosco, com os quais nos relacionamos e com a vida que nos cerca, com tudo o que ela evoca. Mas, se ainda assim precisarmos ser encorajados de alguma maneira com o tumulto que isso pode provocar em nossas veias e artérias fiquemos com a letra de “Balada do Louco” que Rita Lee, anos atrás musicou com Arnaldo Batista, para reflexão: “Dizem que sou muito louco por pensar assim/ Se eu sou muito louco por eu ser feliz/ Mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz(...)/ Se eles são bonitos, sou Alain Delon/ se eles são famosos/ sou Napoleão(...)/ Se eles têm três carros/ eu posso voar(...)” e assim encerra: “Sim sou muito louco, não vou me curar/ já não sou o único que encontrou a paz/ Mas louco é quem me diz e não é feliz/ Eu sou feliz.” (Os Mutantes, 1972)

terça-feira, 21 de abril de 2009

É POSSÍVEL SIM!!!

Não tenho mais tempo algum,
ser feliz me consome."(Adélia Prado) - Imagem: Google Imagens




O QUE HÁ DE ERRADO COM A FELICIDADE?

Por Veruska Queiroz


Já faz um tempinho que recebo uma grande quantidade de e-mails com vários questionamentos sobre a tão sonhada (e, em alguns casos, temida) felicidade. Digo que em alguns casos ela pode ser temida, porque algumas pessoas decididamente (conscientes ou não) sabotam a própria felicidade. Sabotam os caminhos que num conjunto amplo e diverso proporcionariam alegria e, consequentemente, momentos felizes. Mas isso nos reportaria a outras questões que dariam um outro texto. Tentarei me ater aqui ao questionamento sempre tão presente de quase todos nós sobre a possibilidade de ser feliz ou não.

Penso que para ser feliz é necessário primeiro compreender o que é a felicidade. Se sua busca for pela felicidade plena, lamentavelmente não a encontrará em nenhuma parte de sua existência. Mesmo porque a felicidade só existe com o seu oposto, como quase tudo na vida. É preciso conhecer o desprazer para se desfrutar o prazer. Um sem o outro não há. Portanto quando compreendemos que a felicidade é constituída de vários momentos de alegria e prazer entre os possíveis e, às vezes inevitáveis desprazeres, conseguimos melhor usufruí-la. Daí que ser feliz também é uma arte: a arte dos pequenos prazeres. Como diria (Fernando Pessoa, 2005): "A felicidade surge de um desassossego da alma".


Como não poderia deixar de ser, numa perspectiva psicanalítica no que se refere à felicidade ou “a busca de”, devemos entender a Psicanálise, em seu campo teórico, por um lado, como um instrumento de interpretação que viabiliza a diminuição do sofrimento humano, no entanto, por outro, de certa forma, muito descrente em relação à felicidade humana plena. O próprio Freud teria dito que a psicanálise até pode resolver os problemas da miséria neurótica, mas ela nada pode fazer contra as misérias da vida como ela é.


Uma relação entre psicanálise e felicidade seria mesmo possível? Resgatemos, então alguns conceitos: "O primeiro deles é o desejo. O desejo, tal como é entendido pela psicanálise, não é a mesma coisa que a necessidade. Enquanto a necessidade é um conceito biológico e implica uma tensão interna que impele o organismo numa determinada direção no sentido de busca de redução dessa tensão ou satisfação - exemplo: necessidade de fome, buscamos comida - o desejo, sendo de ordem puramente psíquica e subjetiva, é desnaturado e como tal pertence à ordem simbólica(...) O desejo não implica uma relação com objetos concretos."(R.Chemama, 1995). A relação com esses é, na maior parte das vezes, fantasiada (vide meu texto "Amamos porque amamos").


Sabemos que as necessidades do ser humano são atravessadas pela linguagem, mensageira das demandas e a demanda é sempre demanda por outra coisa. O sujeito marcado pela falta, sempre estará em busca de algo, pressupondo necessariamente que o outro tenha esse algo a lhe oferecer: reconhecimento e amor. Então, a demanda é precisamente um pedido de amor ao outro e um desejo de ser reconhecido por ele, numa ilusão de preenchimento e plenitude. Nesse sentido, por ser absolutamente impossível essa plenitude - porque ninguém terá "esse tudo" o que o que outro quer, necessita ou deseja em sua totalidade - da demanda e do desejo surge outro registro da falta. Restando-lhe sempre essa insatisfação - como nos diz Freud - pode acontecer um ciclo interessante, ou seja, com o desejo nunca satisfeito em sua totalidade e com as demandas constantes, o desejo se vê obrigado a tentar encontrar um outro caminho, a realização. O sujeito é um ser de linguagem, é um ser desejante e por isso está 'condenado' a sentir primeiro mal-estar e angústia por desejar algo e ainda não possuir e, somente depois, um estado de satisfação - caso ele consiga realizar seu desejo - ainda que seja parcial. O que nos mantém em pé é a imagem ilusória que construímos de que algum dia fomos alguém imprescindível para o outro. Esse outro são nossos modelos parentais e o primeiro de todos eles, a mãe. Então, adultos, inconscientemente iremos desejar ser "esse ser grande" para o outro com o qual iremos nos relacionar – em todos os tipos de relações – buscando incansavelmente esse reconhecimento no olhar do outroMas, numa outra medida, ficamos com o sentimento constante de que "outra coisa" nos move para além dos nossos instintos e necessidades. E o que seria isso, já que a sensação de satisfação quando uma necessidade é preenchida não promove, necessariamente a felicidade? E porque isso acontece? Isto acontece porque "o desejo jamais é satisfeito" (Luiz A.Garcia Roza, 2004), uma vez que ele se origina na falta constitutiva do ser humano - pois o sujeito sempre estará a desejar outra e outra coisa - e somente em sua forma parcial que ele se realizará. No contexto da realidade, ela, por si mesma, sempre frustrará nosso desejo de plenitude e felicidade. Por isso associar satisfação das necessidades à felicidade plena nunca será uma equação possível.


Mas há a possibilidade da satisfação parcial, como já vimos. Nessa perspectiva, a satisfação parcial - ao contrário do que somos levados a pensar - se configura, então, como algo positivo se nos atentarmos para o fato de que, não estarmos totalmente satisfeitos pode ser o motor de muitas realizações e crescimento. Então, ter satisfações parciais não significa infelicidade ou que estamos fadados a ser infelizes para todo o sempre. Se assim fosse não seria possível viver. Dessa forma, talvez, uma pessoa pudesse estar mais próxima da felicidade quando faz planos, sonha, elabora projetos de vida, buscando principalmente a realização interna, emocional. Viver consiste em revisitar/reavaliar/realizar constantemente os planos do que somos e não somos ou deixamos de ser, do que queremos ou não, do que idealizamos ou não e do que sonhamos ou não. Nesse sentido, penso que a felicidade pode ser entendida como o conjunto de todas as nossas experiências na busca da alegria diante das possibilidades que o mundo nos oferece, pois implica transformar o processo da vida e ser transformado por ela.


A felicidade tal como está constituída e como é possível ser vivenciada não pode ser fruto de uma alienação, ou produto de uma enganação, de uma utopia ou de um delírio. Os mais diversos recentes estudos sobre essa felicidade apontam que ela será - ou poderá ser - (re)inventada por pessoas que aprenderam - e continuam a aprender e a desejar - a conhecerem melhor a si mesmas, o outro, o mundo no qual elas vivem e "escolheram ser felizes", buscando realização pessoal e emocional acima de tudo - na medida do possível para cada um - com capacidade para amar e trabalhar, como nos lembra Freud. Em vez de ficarmos loucamente buscando 'A' felicidade, deveríamos nos imbuir de uns certos - e sempre certeiros - encantamento pelas pequenas felicidades do dia a dia e por uma alegria de viver, enquanto caminhamos pela vida afora. Nessa perspectiva, a felicidade seria um componente intrínseco constituída de vários momentos de contentamento e de alegria que cada pessoa pode ou não carregar no íntimo de sua alma. A chave para todo o mistério estaria, portanto - por mais que possa nos parecer um clichê - dentro de cada um de nós. Enfim, para "ser feliz" há de se ter uma generosa dose de ousadia, coragem e sabedoria. "Nada posso lhe dar que já não exista em você mesmo. Não posso abrir-lhe outro mundo de imagens, além daquele que há em sua própria alma..." (Hermann Hesse, 1995).


segunda-feira, 13 de abril de 2009

E AGORA, JOSÉ?

“A crítica expressa a própria alma de quem a exerce. Tanto a mais elevada quanto a mais baixa forma de crítica são uma espécie de autobiografia.” (O.Wilde) - Imagem: Getty Images




NO MEU LUGAR, O QUE VOCÊ FARIA?

Por Veruska Queiroz



Já há algumas semanas venho pensando muito sobre uma questão que parece ter caído no senso comum e é utilizada em diversos discursos por toda gente que, vez ou outra, quer evocar um senso de tomada de consciência, quer sobre si mesmo, quer sobre um outro. Olhando por uma perspectiva de civilidade e convivência, a questão nos faria deparar frontalmente com a ética. Com a ética pessoal, com o senso de justiça e com o senso de humanidade, onde somos todos confrontados com a dura verdade e realidade de que somos todos seres passíveis de enganos, erros, acertos, momentos mais ou menos lúcidos na vida, momentos de carência ou de superação emocional, etc. E, para além desse blá-blá-bla, nos faria deparar também e principalmente com a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro para tentarmos responder a uma pergunta bem mais complexa do que à primeira vista poderia parecer: “o que você faria se estivesse no meu lugar?”

Todas essas questões andam povoando meus botões internos desde que vi o filme “O Leitor” de Stephen Daldry (o mesmo de "As Horas"), baseado no livro de mesmo nome de Bernard Schlink que, só por curiosidade, é jurista de formação e professor de direito público e de filosofia do direito. A espinha dorsal do filme retrata o julgamento de algumas mulheres nazistas que foram guardas da SS em campos de concentração no final da guerra e foram responsáveis por muitas mortes. Além da questão da Gestapo e da culpa dos alemães, vemos também a complexidade da natureza humana, o conteúdo contextual e histórico da justiça, o dever moral de agir diante de uma injustiça, o direito à defesa e assim por diante.

Em determinado momento do filme - e é precisamente aí que minhas questões tomam corpo - a personagem de Kate Winslet, sendo julgada num tribunal, pergunta aos juízes: “no meu lugar, o que você faria?”. O crime em questão não era o de ter se alistado na Gestapo 'por precisar de emprego', mas ter trancafiado 300 prisioneiras judias dentro de uma igreja em chamas para impedí-las de fugir. Questionada de forma massacrante sobre o porque ela havia deixado tal monstruosidade acontecer sem fazer nada, ela responde: “Meu dever era manter a ordem”. E acrescenta: “Eu não sabia o que fazer”.

No lugar dela, o que você faria? Obedeceria ordens externas ou as contrariariam em nome de algo maior que viesse a atender alguma questão interna, qual como ética, valores morais e/ou humanidade? Transportando para os dias atuais, poderíamos perguntar: "Quando o bicho pega, como você reage? Como é, de verdade, seu caráter, sua essência? Você sucumbe, vende a alma ao diabo, abraça o capeta e atende à normas externas ou às suas necessidades individuais por medo, covardia, em prol de sua segurança e estabilidade ou qualquer coisa semelhante ou você age de acordo com sua consciência e valores morais e éticos?" A questão é perturbadora para alguns. Hoje, seríamos todos resistentes; seríamos todos heróis. É fácil julgar fatos passados através das lentes já estabelecidas pela posteridade, sobretudo quando os vencedores estão supostamente do lado, digamos, do bem. É fácil analisar situações dessa ordem sob uma ótica unilateral, acusar, julgar e apontar os erros sem ter de pensar em todas as vertentes, sob todas as óticas, sem assumir um verdadeiro comprometimento com todos os reais fatos de todos os lados. Mas se você estivesse lá, no olho do furacão, acuado, ameaçado, emocionalmente fragilizado, o que teria feito? Nada? Tudo? Tentaria fazer de outro jeito? Escolheria um outro caminho? Obedeceria ordens externas mesmo tendo de se prostituir moralmente, de lançar sua dignidade na lama ou atenderia a valores morais e éticos humanamente sólidos e elevados? Se pudéssemos nos transportar mentalmente para a pele da personagem naquele dado momento, sentindo todas as suas dúvidas e medos, fragilidades e inseguranças, mas em plena consciência e capacidade de discernimento, o que teríamos feito? Teríamos seguido o caminho A ou o caminho B?(ou o C, D ou E)... Seríamos defrontados - e confrontados - por nós mesmos, em nossos valores morais e éticos, em nosso lado A ou em nosso lado B?(ou C, D ou E)...

Só podemos julgar - julgar aqui no sentido de tentar formar juízos de valores próprios para melhor entender algo e não no sentido de condenar um outro - um ato, um discurso, uma situação ou uma pessoa quando nos dispomos a pensar bilateralmente, quando conseguimos nos despir da falsa moralidade, quando conseguimos ser honestos com nossa própria condição de ser humano igual a de todos os viventes, quando conseguimos sair de trás de nosso orgulho, de nossa pose muito bonita para fotografia e podemos nos sentir “como se”. Como se estivéssemos vivendo sob as mesmas condições ou sob condições semelhantes, com a mesma história de vida, com as mesmas dores, sob as mesmas condições sociais, econômicas, culturais ou emocionais, sob as mesmas oportunidades ou a falta delas, como é o caso do filme.

Só se pode julgar a história pela lente da história, assim como só se pode julgar algo ou alguém com real justiça e moral pela lente da própria estória desse alguém. Um ato isolado não é uma pessoa assim como um fato sozinho não compõe nenhuma história. Sempre há dois ou mais lados, duas ou mais visões, sentimentos e percepções de uma mesma estória, de um mesmo fato, de um mesmo acontecimento. Fugir ou lutar - e aqui fugir e lutar vistos e compreendidos sob diferentes formas e não somente nas formas físicas de se apresentarem - são as duas condições psíquicas que são colocadas lado a lado, em frações de segundos, quando uma decisão precisa ser tomada. É de acordo com questões fundamentais que organizam a constituição do sujeito transmitidas ou não durante a sua infância - e suas representações psíquicas - tais como amor, afeto genuíno, cuidados, reconhecimento, transmissão de segurança em si mesmo e no outro, formação da auto confiança, da auto estima, do senso crítico saudável, maior ou menor sentimento de mais valia, realizações, frustrações, conquistas e rejeições, que essa decisão será tomada. Todas essas questões da infância unidas às vivências de cada um ao longo dos anos é que desenharão o cenário de toda uma vida de um sujeito: seu caráter, seus preceitos morais e éticos, sua capacidade ou não de criar vínculos de afeto genuíno e amor com outras pessoas, sua capacidade de confiar em si mesmo, nas outras pessoas e no mundo, sua forma de viver com questões fundamentais da vida como lealdade, honestidade, hombridade, integridade, civilidade.

Enfim, lutar ou fugir, de forma honrada e bonita ou de forma desonrada e horrorosa irão depender de como um sujeito se constituiu ao longo de sua vida, desde o seu nascimento. E aqui, querendo ou não, gostando ou não, não há como fugir dessa realidade. E que se levantem todos os deuses do Olimpo...

Deixo a pergunta da personagem ao juiz em seu julgamento: “No meu lugar, o que você faria?”

terça-feira, 7 de abril de 2009

ANOS 80 - SAUDADES E RELEITURAS



Os anos 80 serão eternamente lembrados pelos exageros e ostentações, pela busca de status e poder. Essas manifestações estavam em todos os lugares: nos seriados da TV, na economia, no comportamento da juventude. A moda apressou-se por responder a esses desejos, criando um estilo nada simplório. As roupas eram um exagero só: nas proporções, nos brilhos, nos detalhes. Num afã em ostentar, todas as roupas de marcas conhecidas tinham seus logos estampados no maior tamanho possível, com preços proporcionais. O jeans alcança status de peça tem que ter da época. E os shoppings tornaran-se paraíso dos consumistas. Ser bem-sucedido, bem-vestido, ter um corpo bonito e saudável era essencial para o sucesso.

A História costuma ser uma rica fonte de inspiração para a moda. Muitas coleções reinventaram roupas e cortes do passado, restaurando estilos, recuperando tradições. Hoje, vemos a moda se debruçar sobre sua própria história, recriando tendências de um passado bem recente.

A releitura de antigos clichês, a exploração das ambiguidades, a reflexão sobre conceitos como bom gosto e mau gosto, assim como a mistura de tendências a partir dos anos 80, provaram que todos os limites são relativos e que a moda não é mais que a projeção de nossos sonhos, idéias e aspirações, e que, afinal, tudo é mesmo possível no mundo da criação.
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Um pouco de moda, de estilo, de tendências e muuuuuitas saudades!!!

Esses anos 80 deram mesmo o que falar... De tudo um pouco se via e havia espaço para todo mundo: yuppies, punks, rebeldes, paz e amor, mocinhas e bandidos. O céu e o inferno, o dia e a noite.


Fazíamos aeróbica com faixa na cintura, usávamos ombreiras nas roupas e new wave no cabelo com franja repicada, tínhamos tênis Redley duas cores, sapato Cândida Andrade, mochila e agenda da Company, usávamos Yes Brasil, Zoomp, Forum, Bee, Divina Decadência, Fiorucci, Wagon; gravávamos músicas do LP para a fita cassete Basf 60 ou 90 minutos, dançávamos ao som da Blitz, Grafite (Ma ma ma ma ma maria), Kid Abelha e os Abóboras Selvagens, Paralamas do Sucesso, Legião Urbana, Barão Vermelho, Biquini Cavadão, Capital Inicial, Heróis da Resistência, Nenhum de Nós, Ultraje a Rigor, Engenheiros do Hawai, João Penca e os Miquinhos Amestrados, Titãs, RPM, Dr.Silvana e cia, Marina, Eduardo Dusek, Kiko Zambianqui, Léo Jaime, Lobão e os Ronaldos, Hanoi-Hanoi, Lulu Santos, U2, The Police, Men at Work, Dire Straits, A-Ha, Madonna, Cindy Lauper, Queen, Supertramp, Erasure, George Michael, Toto, etc; Cazuza anunciava que havia se infectado com o vírus da Aids e Madonna escandalizava o mundo com seus shows.







Rendas, babados, couro, sobreposições, meias finas estampadas, desenhadas ou rendadas, tachas, correntes, tule, balonês, godês, calças baggy, clochard, cintura alta marcada com cintões... era mesmo a década da descoberta, do exagero, das cores, da criatividade, da inventividade. E, como já sabemos, tudo o que é verdadeiramente bom permanece e recria-se em si mesmo, se reinventa, renasce em novas formas, abre espaço para o novo dentro do "velho", cria suas próprias oportunidades de se lançar em novas ondas, ainda que seja no mesmo mar. Não é a toa que a grife mais trend, mais fashion, mais desejada e mais adorada no mundo inteiro reinventou o que está na veia desses anos 2000 e poucos: a década de 80. De um lado uma foto da Madonna em pleno lançamento de "Like a virgin" (1984) e de outro, a Louis Vuitton em seu lançamento da coleção 2009. Puro luxo!!! Demais!!!
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Ahhh... esses anos 80 foram um marco na história, um divisor de águas no segmento da moda, da indústria têxtil, da indústria fonográfica... que delícia viver os 80!!! Tudo tinha o sabor do grande, do exuberante, das cores fortes, do couro, do vinil, das ombreiras, do rock 'n roll, do espírito esportivo, do culto (ainda não desmedido) ao corpo... tudo completamente hipnotizante e apaixonante. E tudo é mesmo verdade, mas os looks acima são, nada mais, nada menos que desfiles da Semana de Moda Outono-Inverno/2009-2010 de Paris, respectivamente, Chanel, E.Ungaro e Hermès.
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Tailleurs - que magnífico presente e herança nos deixou Mademoiselle Chanel - são lindos, são elegantérrimos, são sinôminos do vestir bem e são, consequentemente, atemporais. Tanto assim que podemos ver nas imagens em preto e branco dois modelos da Primavera-Verão/83 de Balmain e nas duas outras imagens dois modelos Prada, mais uma vez, no desfile da Semana de Moda Outono-Inverno/2009-2010 de Paris. Todos absolutamente deslumbrantes!!!
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Esse poderia ser uma editorial belíssimo da Vogue nos lançamentos das coleções Outono-Inverno/2009. As jaquetas de couro tem uma modelagem linda, as várias correntes usadas sobrepostas ao cinto ficaram perfeitas, a meia calça fina contrastando com as longas e amplas saias, as botas na base da panturilha... tudo perfeito!!! Se não fosse por apenas um detalhe: o editorial é da Vogue, mas de 1986. Maravilhoso mesmo assim!!!
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Um autêntico desfile street wear, febre dessa década de 80, tão propagadora de altas temperaturas? O exagero parece não negar. A mistura de cores, tecidos e modelagens também são os pontos fortes, a legging (antiga fuseau repaginada) aparece como peça curinga. Mas, aqui as aparências enganam, principalmente para as mais desavisadas e desconectadas. O desfile foi sim uma referência ao street wear da década de 80, mas quem o colocou na passarela foi a Amapô, na SPFW/2009. Haja vontade de ativar a memória, não?

Bem, aqui algumas dicas preciosas: por favor meninas, bom senso e água benta nunca fizeram mal a ninguém, ok? Estar "na moda", ser uma trend setter ou ser considerada um ícone de elegância passa a léguas de distância de ter o closet abarrotado com centenas de peças das coleções das mais badaladas grifes, principalmente em tempos como os atuais, onde o que é conceitual e verdadeiramente elegante é o oposto da ostentação e do consumismo sem limites. Ser uma verdadeira trend setter é unir o bom senso, o bom gosto, o estilo pessoal a algo que se possa dizer sobre sua personalidade, conferindo-lhe uma marca única e atemporal, que é exatamente o oposto de parecer "produtos fabricados em série", sem originalidade e expressão. Seguir de modo paranóide a moda, ser escravo dela e parecer uma manequim de vitrine adotando o consumismo exacerbado como modo de vida, além de cafonérrimo, está, na atualidade, completamente out. Não queiram ser chamadas de alienadas, burras e "dondocas empirocadas da cabeça", pois, atualmente, esse estilo de vida está sendo visto como uma das muitas espécies de "compulsão", que teria suas prováveis causas em uma grande insegurança pessoal e/ou social e em uma - não menos preocupante - inadequação com a própria imagem - com a auto-estima e com a auto valorização (e ninguém quer ser visto assim, não é mesmo?). Além de ser considerado desatualizado, deselegante, demonstrar falta total de inteligência - o que é imperdoável para uma verdadeira trend setter - demonstra falta de conexão com a contemporaneidade, falta de bom senso e de personalidade. Se liguem.
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Já aqui, a Madonna de novo, no autêntico estilo yuppie-punk da época, com seu look monocromático, calças baggy, cintura alta marcada com um cinto, muitas correntes e pulseiras. O estilo foi rebatizado de total black e as calças passaram a se chamar cenouras ou carrot pants. Tirando o pavorosíssimo laçarote no cabelo (que naqueles tempos eram altamente fashion) e o cabelo inconfundível dos anos 80; se não soubéssemos de quem se tratava a foto, ela poderia estar saltitando nas mais badaladas revistas de moda da atualidade. Mil vivas... pois eu, juntamente com mais uma porção de milhares de pessoas lindas, inteligentes, elegantes (a volta dos anos 80 é mais uma prova disso), desencanadas, leves e felizes fizemos parte de uma das épocas mais bacana da história, em todos os segmentos (que me desculpem as outras gerações - as de antes e as de depois - mas ter vivido os anos 80 é fundamental).
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Parece um look total andrógino autêntico dos anos 80, não? Essa jaquetona com ombreiras enoooormes, essa cintura alta marcada com cinto (lembrei-me também da clochard - que em francês significa mendigo, vadio e foi inspirada nas roupas dos palhaços - também está super trend) e o cabelo a la new wave. Pois é... mas esse editorial com a belíssima Milla Jovovich está na Vogue Francesa/Novembro de 2008.
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E, por fim, mas não menos deliciosamente saudoso, a série Beverly Hills 90210 - o número no título se refere ao Código Postal - (ou Barrados no Baile, nome dado ao seriado no Brasil). A série estreiou no final de 1990 pela Fox e expressava também, a exemplo de outros segmentos, o comportamento jovem na virada dos anos 80 para os 90. O estilo que prevalecia ainda era guiado pelo grande chacoalhar promovido durante toda a década de 80. Reparem na modelagem ampla do casaco - chamava-se blazer - (rebatizado atualmente de paletó oversize ou boyfriend) da Jennie Garth (a Kelly Taylor), usado sobre saia e meias finas pretas (poderia ser um vestido também). O look da Shannen Doherty (a Brenda Walsh) também está atualíssimo, num total black tal qual as tendências saídas do forno das coleções Outono-Inverno/2009. O casaqueto da Gabrielle Carteris (a Andrea Zuckerman) também é peça chave desse Outono-Inverno com modelagem mais ampla e ombros estruturados ou com ombreiras, se preferirem.

Enfim, a vedete da vez é, mais uma vez, a década de 80. Com muito bom humor, mas também e, principalmente, com muito bom senso e bom gosto, por favor. Vamos nos permitir revisitar essa época tão rica, tão fascinante e tão atual que foi a década de 80, que de "década perdida" como rotulavam alguns "grandes pensadores" da época, não conseguiu se perder nem sequer no tempo.

Um brinde!!!

P.S.: Todas as imagens contidas nesse texto foram retiradas de sites públicos dos editoriais de moda e sites públicos com referências aos anos 80.

segunda-feira, 30 de março de 2009

RETRÔ GLAM

“No novo tempo, apesar dos castigos/ Estamos crescidos, estamos atentos, estamos mais vivos/ Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer/ No novo tempo, apesar dos perigos/ Da força mais bruta, da noite que assusta, estamos na luta/ Pra sobreviver, pra sobreviver, pra sobreviver[...]/ No novo tempo, apesar dos castigos/ Estamos em cena, estamos nas ruas, quebrando as algemas/ Pra nos socorrer, pra nos socorrer, pra nos socorrer/ No novo tempo, apesar dos perigos/ A gente se encontra cantando na praça, fazendo pirraça” (Ivan Lins) - Imagem: Getty Images




NOVOS VELHOS TEMPOS

Por Veruska Queiroz


Nas vitrines das maiores e mais badaladas grifes do país estão sendo lançadas as coleções Outono-Inverno/2009. Pode ser com um certo assombro que pessoas que tenham seus trinta e poucos anos ou mais vejam um revival dos anos 80 (pois é... mais uma vez) em modelos onde o exagero típico da década é a palavra da vez: ombros estruturados - o must have da estação - (que lembram as famigeradas ombreiras que todas nós juramos nunca mais usar), as calças cenoura ou carrot pants (nossas antigas baggy), coletes, jaquetas, muito preto em produções inteiras, couro, vinil, tule, rendas, babados, godês e tachas lembrando o mote clássico da época – o bom e velho rock 'n roll -, acessórios máxi (muito dourado, pérolas, pingentes em formato de cruz - meninas, lembram da Madonna nessa época?) e em grande quantidade, meia calça fina (normal, desenhada, rendada, arrastão), muitas sobreposições, cintões, paletós (os antigos blazers) sobre vestidos tubinhos (sim, eles voltaram); botas, muitas botas, com canos em tamanhos variados, maquiagem com olhos bem marcados, cabelos curtos ou, no máximo na altura dos ombros, etc. Enfim, depois do Fashion Rio e da SPFW e depois de assistir os lançamentos Outono-Inverno de algumas grifes fiquei questionando essa volta maciça e generalizada ao passado. Algumas perguntas persistem: será saudosismo mal disfarçado em expressões elegantes como retrô ou vintage? Será falta de inspiração? Ou falta de criatividade? Ou será mesmo o que parece ser a irrefreável tendência dos novos (novos?) tempos, ou seja, a retomada do velho para fazer o novo, a reciclagem e a revitalização do antigo?

Meus questionamentos que começaram pelo deleite das novas coleções Outono-Inverno/2009 se alongaram. Comecei a pensar sobre essas questões do novo-velho/velho-novo, reciclagens, remodelagem dos conceitos e transformações das formas de se ver o mundo sob uma ou outra perspectiva de forma mais expressiva. Penso que o que está acontecendo com o mundo da moda e todo o burburinho que ela provoca, considerado por alguns, talvez por não entenderem de fato o que seja a moda, como futilidade, não seja diferente do que esteja acontecendo com o mundo e com a humanidade nos últimos tempos de uma maneira geral. Estamos todos começando a entender que, para gerar um novo modelo e padrão de mais qualidade de vida é necessário uma postura de maior consciência sobre aquilo que consideramos ser a ordem social e econômica, uma postura de atitudes que visem uma melhor utilização dos recursos disponíveis, de novas formas de consumo e, a partir daí, da construção de novos paradigmas que consigam não somente transformar o caos sócio-econômico-cultural no qual estamos nos consumindo, mas, principalmente, conectar mais os povos entre si, ligados por um sentimento de justiça e comprometimento capaz de melhorar os relacionamentos humanos, desenvolvendo a tolerância, agindo com maior sabedoria e generosidade para encontrar soluções e mudar o terrível cenário mundial atual.

Sei que o assunto pode parecer piegas e soa como demagogia barata e cansativa, mas nesse momento não há escolha: que sejamos piegas, que sejamos cansativos, que sejamos chamados demagogos, idealistas, sonhadores, eco-ativistas, mas que não percamos o bonde da história, nem o fio da meada, que não fiquemos em cima do muro ou vendo a banda passar. Esses são outros termos já bem batidos e que viraram lugar comum (tal como a moda já há algum tempo), mas, nesse momento, o planeta, os nossos recursos e as relações humanas estão exatamente pedindo, penso eu, esse lugar comum, essa volta ao passado, onde a vida em si, suas diversas nuances e os valores pessoais eram mais valorizados e verdadeiros: as pessoas possuiam reconhecimento e status por serem e não por terem. A palavra de um homem era dada num fio de bigode (ok, nessa fui um pouquinho longe), os valores éticos eram ovacionados, as pessoas conversavam mais, observavam mais, compartilhavam mais, conviviam mais. O consumo era apenas a medida do bem estar pessoal e da família e não moeda de troca da vida vazia e sem sentido de quem precisa consumir e possuir para se sentir alguém de valor. Um modelo de carro, de televisão ou de máquina de escrever (sim, porque "nessa época sua avó nem pensava em conhecer um computador") eram considerados realmente bens duráveis, não eram peças descartáveis para sustentar a engrenagem da máquina do consumo fanático e desenfreado que acaba por não preencher o que se esperava e não desembocar em lugar algum, já que se perdeu há muito o verdadeiro objetivo e por aí vai... Não faço aqui nenhuma apologia a nenhum tipo de retrocesso tecnológico, social, científico ou cultural. A questão não comporta definitivamente essa visão limitadíssima e reducionista. Acredito que o que está se fazendo imperioso é uma nova postura, uma inovadora forma de encarar e lidar com esse novo mundo que estamos criando.

Não é a toa que a moda está, há alguns anos em constante movimento retrô. Também não é a toa que a indústria fonográfica mantém há algum tempo a fórmula mágica de se relançar antigos sucessos em coletâneas e perfis para reviver as décadas passadas. Com a indústria televisiva também não é diferente: remakes estão nas telas. Se não houvesse um forte desejo interno das pessoas em resgatar algumas nuances do passado, mesmo com a marcha da evolução, certamente, essa visível e constante retomada não estaria acontecendo. Penso que, assim como uma criança ou um adolescente que estejam com problemas e não estejam encontrando as soluções adequadas, tendem a "pedir socorro" de uma maneira não muito convencional; as pessoas estejam fazendo o mesmo em relação ao caos que se instalou em todos os cantos do mundo, em todos os segmentos da vida.

O que estaria faltando para a humanidade começar a repensar os paradigmas atuais sobre a produção e utilização dos recursos de uma forma mais sustentável, onde a qualidade de vida e os seres humanos sejam a prioridade e o motores do progresso? Desculpem-me, mas as perguntas, nesse momento, pulam da minha boca com vida própria... Porque precisamos reformar nossos guarda-roupas a cada nova coleção? Ou trocar todos os móveis e o carro a cada um ou dois anos e o celular a cada seis meses? O que estaria por trás desse consumo, de certa forma burro, frenético e pouco funcional, já que nada parece feito para durar, para ser apreciado e curtido realmente? O que se estaria precisando preencher? O que se estaria precisando camuflar ou tamponar? Do que se estaria fugindo? Para que algumas pessoas estão realmente vivendo? Com qual objetivo? Onde querem chegar? Será que apenas na medíocre e pobre confirmação e auto afirmação de algum tipo de status e poder? Será que algumas pessoas se contentam em ser somente isso - um amontoado de carne que precisa "Ter" para conseguir "Ser", porque, de qualquer outra forma não seriam muita coisa? Isso sem falar das questões mais importantes e emergenciais desse mundo de tsunamis, furacões, enchentes, crises, violência, aquecimento, poluição, etc... E se a água acabar? Vamos beber as roupas, os sapatos e bolsas, os celulares e os móveis novos? E se uma nova guerra mundial acontecer? Vamos nos esconder dentro dos nossos carros importados? E se o aquecimento global não for contido de alguma forma? Poderemos acabar sucumbindo sob nosso lixo, envenenados pela poluição do ar e sem alimentos suficientes para todos. Voltaremos aos tempos bárbaros? (Desconfio que algumas pessoas já voltaram - e lembrei-me agora do livro do Saramago "Ensaio sobre a cegueira" (1995) que F.Meirelles brilhantemente transformou em filme em 2008 e qualquer possível semelhança com um futuro, infelizmente não muito distante se não mudarmos imediamente o curso dos acontecimentos, mesmo que mínima, terá sido mera coincidência, ou não). Será que ainda iremos pensar em querer o último lançamento tecnológico, imobiliário ou automobilístico ou ainda algumas peças lindas da nova coleção da Chanel, D&G, Gucci ou Louis Vuitton?

E, para quem possa, até com certa razão se levarmos em consideração algumas "razões", torcer o nariz para esse texto, espero sinceramente que, até que coisas mais sérias ou trágicas aconteçam Marte, algum novo planeta ou o País das Maravilhas possam ser amplamente habitáveis, lindos e felizes... E "o Plunct Plact Zum pode partir sem problema algum" (R.Seixas, 1983).