terça-feira, 13 de março de 2012

AQUELA QUE SÓ TEM ALMA

"Não importa se é caminho complicado,/ Se a curva é reta,/ Ou se a reta entorta./ Você buscou seu brilho, voltou completa;/ Jogou a tranca fora, abriu a porta." (Flora Figueiredo) - Imagem: Google Imagens



AQUELA QUE SÓ TEM ALMA


Por Veruska Queiroz



Sou mulher de tempestades
De lampejos
De desejos
De intensidades

Sou exagerada e dramática
Espalho por aí minhas tintas
Sou vulcão e pragmática
De hábito ou cinta-liga

Sou mulher de viver de amor
De alma sagaz
Colhendo sabor, cor e flor
E me desnudando audaz

Sou mulher de fases?
Sim... Fases e faces
Nuances
Romances

Sou silêncio e grito
Sou fascínio e letal
Sou limite e infinito
Sou pluma e metal

Sou mulher de salto?
Sim... salto e alto
Fato
Meu eu exato

Sou mulher que invade
Destempera
Sensata temeridade
Fera. Primavera

Sou oceano e remo
Sou caleidoscópio e asas
Sou doce e veneno
Sou brisa e brasas

Sou mulher que arrisca
Paz e tormenta
Que risca e rabisca 
E arde como pimenta

Sou nó e laço
Não aceito o mais ou menos
Sou bailarina e palhaço
Vivo visceralmente de extremos

No pudor, sou furor
Sou loucura e sensatez
Corpo e coração pulsam ardor
Sou o talvez e a solidez

Sou mulher que cala
Que tudo diz
Que tudo espalha
Mas também sou aprendiz

Sou mulher de rimas, sons e cifras
De sínteses e antíteses
Delirantes primícias 
E faço até fotossíntese

Sou o sim e o não
Tenho o mundo em mim
Sou implosão e explosão
Semente e jardim

Sou mulher de mistérios
Ainda que possa ser desvendável
Porque tenho em mim hemisférios
Serei sempre esse ser indecifrável

Sou mulher de fervura
Que não tem calma
Sem brandura nem armadura
Aquela que só tem alma.


OBS: A pedidos de pessoas muito especiais em minha vida - embora este blog não tenha como finalidade poemas e poesias - a exemplo de outras duas vezes em que o fiz - decidi publicar um dos poemas que, no âmbito da escrita, está sendo também uma nova e feliz direção e, nos últimos tempos, uma constante também, unindo-se aos textos que já escrevo. Na verdade, um retorno de um tempo remoto - com a exceção das duas vezes que citei - mas um retorno que está sendo delicioso, de novas descobertas, novas perspectivas, novos projetos e, principalmente reinvenções e recriações - de mim mesma, do mundo que me cerca e dos novos olhares, saberes, sabores e caminhos desta vida linda.
Obrigada a todos que incentivaram-me e incentivam-me pelo amor, afeto genuíno, apoio, cumplicidade, amizade e carinho. Vocês são fundamentais e imprescindíveis em minha vida.
Em breve - mas ainda sem previsão - todos os poemas estarão em em outro blog, dedicado somente a eles.



"Porque o fogo que me faz arder é o mesmo que me ilumina."


(Étienne La Boétie, in: Discurso da Servidão Voluntária)

domingo, 4 de março de 2012

MUDE SEMPRE.

"Ninguém que conjure os mais malígnos daqueles mal domados demônios que habitam o Homem e procure medir-se com eles, pode passar incólume por esta luta."(Sigmund Freud) – Imagem: Google Imagens





MUDE SEMPRE. ATÉ A ÚLTIMA GOTA. NÃO MATA.


Por Veruska Queiroz



Parece-me sempre que estou (re)começando algo. E não somente parece-me. Não é algo apenas como um sentimento em minha essência, mas algo como necessário para meus acertos e desacertos, para minha loucura e sensatez, para meus partos, lutas, lutos e renascimento, para minhas construções, desconstruções e reconstruções. É certo de que o faço. O direito e o avesso em mim visitam-me sempre, embora seja no avesso minhas maiores revoluções e evoluções e seja por ele também que vejo, revejo e recrio a mim mesma e o mundo, na maioria das vezes (ainda bem!). Meu ano tem vários e distintos "Anos Novos"... Todos são como minhas revisões e recriações de mim mesma e do mundo inteiro em mim, do que vejo, do que leio, do que observo, do que ouço, do que falo, do que quero, do que não quero, do que já quis e não quero mais, do que já quis e posso querer novamente, do que ainda posso querer nunca antes querido, do que realizo e do muito além que vou realizar. Vivo assim... em constantes mudanças, mutações e transformações. Algumas doem sim, outras doem quase nada e outras, muitíssimo ao contrário, fazem muito felizes. Mas todas, sem exceção, considero belíssimas e fazem muito bem quando as vejo em retrocesso, pois o mais importante delas são as lições aprendidas e apreendidas. Sim, pois não basta que aprendamos simplesmente. É necessário que as mudanças e suas lições entrem em nós, arranhem e acarinhem nossas entranhas e encontrem um ninho. Ninho este - já de muitas formas - preparado por nossas vivências e subjetivações, mas que precisa ser rearranjado de tempos em tempos para seu melhor alinhamento e aconchego. Afinal, ninho refere-se à casa, a um lugar de abrigo, de recolhimento, de acolhimento. As lições e as mudanças que se fizerem necessárias precisam encontrar este ninho. E não somente encontrá-lo, mas aprender a sair dele e a retornar, sempre que necessário, quantas vezes forem preciso. Para as mudanças é imprescindível também aprendermos a desembarcar de nós mesmos para melhor nos olharmos, olharmos as paisagens, o que nos cerca, quem entra e sai em cada estação, quem está chegando, quem está somente de passagem, quem está indo embora... é preciso desaprender para aprender de novo e aí sim embarcarmos novamente, em um trem renovado, recriado, transformado. E sim, cada um o fará, naturalmente – ou não - à sua forma, no seu tempo e rítmo. Freud já dizia em "O Mal Estar na Civilização" (1996[1927-1931], vol XXI): "Não existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si mesmo de que modo específico ele pode ser salvo".

Sim, mudanças e transformações podem ser uma das muitas maneiras de sermos salvos. Salvos de que? Ah, Caetano Veloso disse muito bem certa vez: "...cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é" (Dom de Iludir, 1982). Cada um de nós precisamos nos salvar todos os dias... de nós mesmos, de nossas intempéries, de nossas ilusões, de nossas veladas e não assumidas – às vezes sequer reconhecidas ou até negadas - vitimizações, de nossos conflitos que nos apavoram – sabendo que conflitos sempre teremos e não é a evitação deles que proponho aqui – de nossas meias verdades, de nossas inteiras mentiras, de nossos medos, de nossas parcas visões, de nossas considerações enviesadas e de nossas caquéticas certezas atravessadas pelo nebuloso opaco ou obstáculo que impomos aos nossos olhos. Sim, para o espanto de muitos e a aversão de outros tantos – que os céus os protejam - todos somos seres imperfeitos e, com as devidas graças, insatisfeitos também – não muito, mas o necessário para nossas buscas e descobertas, para novas perspectivas, novos olhares, novos saberes, novos sabores, novos anseios e... mudanças.

Mas não basta abrir os olhos para ver... não basta ouvir para escutar... não basta falar para dizer... não basta andar para caminhar... não basta fazer diferente para mudar e transformar... não bastam silêncio e serenidade para a verdadeira paz... não basta simplicidade para a beleza... não bastam palavras para ações... não bastam ações para atitudes... não basta existir para SER... É preciso aprender, desejar e querer... E principalmente desejar e querer mesmo ir mais além. E para tais há que se ter alma. Isto mesmo: alma. Alma pulsante, inquieta, latejante que, pelo menos tenta entender o direito e o avesso de si mesmo e da vida e vai aprendendo, muitas vezes, a tropeços e arranhões, outras vezes com a leveza de uma pluma, a transitar nos dois mundos. Alma que tenta sair do lugar de sempre, mesmo que não salte ou voe – que seria ainda mais belo - e que tenta ao menos caminhar por novas estradas ou seguir outras direções. Alma que, com muito esforço – ah, que esforço bonito a verdadeira alma bela faz – tenta desbravar as próprias trilhas internas para buscar mais a si mesma, para saber mais de si mesma, para não ser a mesma a vida inteira – deve ser muito chato e triste isso – para alterar a ordem e sair da promíscua zona de conforto. Falei promíscua? Sim. Ao contrário do que o senso comum cultua, a zona de conforto, aquele lugar aparentemente muito bem arrumadinho e bonito, de onde muitos de nós não saímos e que é somente um lugar estático e, exatamente por isso, meio sem vida, para colocarmos as fotos nossas, da família, de amigos - todos sorrindo - tentando acreditar a todo custo nos sorrisos - mesmo que eles tenham sido verdadeiros em dado momento (até que as fotos e a vida real amarelem, os sorrisos deixem de ser sorrisos e tudo deixa se ser...) é uma promiscuidade abominável e imensurável do ser para consigo mesmo, uma violação hedionda e brutal da sua essência, uma violência sem precedentes do que podemos ou poderíamos ser, pois ali, na linda zona de conforto é precisamente onde está a verdadeira desordem, a verdadeira mistura indiscriminada. Desordem velada, varrida para debaixo do tapete ou sequer reconhecida – por falta de referenciais, ou por falta das representações psíquicas em relação às figuras parentais, que deveriam cumprir o papel de fazer o sujeito/criança "nascer" em sua subjetividade, encontrando para a mesma um lugar e um reconhecimento ou até mesmo por falta ou inversão de valores - ou tudo isto junto. Mas o fato é que ela - a promiscuidade execrável da linda zona de conforto - continua lá, sujando aquele que não consegue sair do lugar e todos de seu convívio, tornando tudo fétido disfarçado com “Parfum francais”, contaminando tudo e todos que encontra pela frente, provocando doenças desfigurativas – muitas vezes silenciosas, mas fatais – apodrecendo por dentro seus praticantes como cupim nos móveis. Quando nos damos conta o móvel cai, desmancha-se como papel e apodrecido, desintegra-se e o que resta vai para o lixo.

Mudanças... transformações... são questões de escolhas, da capacidade ou incapacidade de cada um – muitas destas condições já precisamente inscritas na constituição psíquica de cada um de nós - como quase tudo o que existe em nossas vidas. São também questões de coragem e ousadia e de um verdadeiro pertencer a si mesmo. Mudanças são as únicas coisas permanentes no mundo. Muitos tem medo delas (que pena!). Pois eu tenho medo é que nada mude (e ainda bem que muda, sempre!). Deixo o pensamento último com Sigmund Freud, novamente em 'O Mal Estar na Civilização" (1996[1927-1931], vol XXI – Grifos meus): "Todos os tipos de diferentes fatores operarão a fim de dirigir sua escolha. É uma questão de quanta satisfação real ele – o indivíduo, o homem – pode esperar obter do mundo externo, de até onde é levado para tornar-se independente dele e, finalmente de quanta força sente à sua disposição para alterar o mundo..." E enfim, parafraseando Clarice... Mude sempre. Até a última gota. Não mata.


"Nunca é alto o preço a pagar pelo privilégio de pertencer a si mesmo."

(Friedrich Nietzsche)

quarta-feira, 9 de março de 2011

DESEJOS E SUPERAÇÕES

“Somente onde há sepulturas, há também ressurreições.”(Friedrich Nietzsche) - Imagem: Google Imagens





SOBRE DESEJOS E SUPERAÇÕES


Por Veruska Queiroz


Realizou-se dia 27 de fevereiro desse ano a 83ª edição do Oscar, em Los Angeles. Entre os ganhadores, “Discurso do Rei” e “Cisne Negro”. Filmes belíssimos que levam os espectadores a inúmeras sensações e emoções – desde encantadoras a perturbadoras. Também não posso deixar de mencionar filmes como “Bravura Indômita”, “Inverno da Alma”, “127 Horas”, “O Vencedor”, “Toy Story” e até o documentário “Lixo Extraordinário”, que fizeram-me sair do cinema ora muito emocionada, ora extasiada e muitas vezes com um sentimento de redenção e até mesmo, em algumas considerações pontuais, de dever cumprido – como se pudesse ter estado na pele dos personagens – ou como se, numa atitude nostálgica ou visionária, enxergasse – sob outras perspectivas, obviamente - muito de minhas próprias vivências ou desejos.

Para quem viu estes filmes, uma coisa fica bem clara: cada um, a seu modo, aborda temas inquietantes e fascinantes sobre desejos, superações e vitórias, sejam sobre algo, alguma coisa ou sobre si mesmo. De alguma forma, todas as estórias dinamizam desejos, desafios, adversidades, limites – quer sejam externos ou internos - e a obstinação e luta para realizá-los, superá-los, para ir além, para vencê-los. Também falam sobre amizade, sobre auto-conhecimento – ou pelo menos da luta que se pode travar para o mesmo - e sobre coragem e liberdade.

A grande festa do Red Carpet e do Cinema Mundial ainda brilhava com todo o seu glamour e estórias com nuances bem reais - uma particularmente baseada em fatos verídicos - enquanto outras estórias – absolutamente reais - de desejos, adversidades, desafios, coragem e superação saltavam aos nossos olhos. Há pouco mais de trinta dias, na Cidade do Samba no Rio de Janeiro, três escolas de samba perderam muito do trabalho de um ano inteiro. Fantasias e carros alegóricos se consumiram inteiros no fogo. Entre lágrimas, dor, desespero e muita tristeza estavam também – talvez muito semelhantes aos do cinema – desejos, desafios, adversidades, limites, obstinação e superação.

Pouco antes destas estórias estarem nas críticas, pontuações e comentários de muitos, no meu texto anterior abordei, entre outras coisas, considerações sobre medos, mudanças e (re)começos. Em certa medida, os conceitos se entrelaçam se entendemos que lidar com desafios e resistências, vencer nossos medos ou limites, superá-los para promover mudanças e recomeçar implica desejar grande, ir além, buscar talvez o novo, novas formas de ser e estar no mundo. Implica também conseguirmos manejar a angústia do medo que este novo promove e termos um tanto de coragem, determinação e, muitas vezes, obstinação mesmo para a superação e, não obstante para a vitória, se essa for pretendida – quer ela signifique uma vitória sobre algo ou sobre si mesmo. Eis algumas reflexões sobre esse tempo de desejos, desafios, superações, mudanças e (re)começos de filmes hollywoodianos, de escolas de samba e da escola da vida:

1) Tanto no que vimos nos filmes do Oscar/2011, em Los Angeles quanto na tragédia do fogo para algumas Escolas de Samba do Rio de Janeiro e também não muito difícil de vermos pipocando aqui e ali em uma ou outra vivência humana – talvez as vivências mais audaciosas e corajosas - há uma premissa: o desejo. O desejo grande, aquele perturbador, inquietante, febril, convulsional, transformador. Aquele que nos molda e nos define, que nos vira do avesso, que revira todas as nossas dúvidas e certezas, que nos deixa sem direção e ao memso tempo é nosso norte, aquele que nos desestrutura e ao mesmo tempo nos preenche, aquele que mostra nossos lados A e B - às vezes C, D, E , F.

2) Se há esse desejo grande que nos molda, nos revira e nos define é porque não podemos, não sabemos, não queremos e não conseguimos seguir adiante sem ele. Ele causa inquietude, questionamentos, alegrias, perturbações, insanidades, destemperos, raiva, paixão. Também causa aquele algo a mais que nos impulsiona e nos faz querer ir além, nos aprimorarmos, vencermos nossos fantasmas, entrarmos em nossos porões, abrirmos as janelas, deixarmos entrar o sol. É ele que nos mantém e nos move. E, por nos mover, ele também é o responsável pelas reflexões e buscas que fazemos de tempos em tempos – quando não sempre – para realizá-los.

3) No caminho da busca pela realização dos nossos desejos grandes – aquele que nos movem, nos moldam e, principalmente nos definem –  é fato que iremos nos deparar com nossas limitações, imperfeições e com nossas resistências, com dores e perdas, com algumas frustrações, com angústias, medos e teremos de, em dado momento, decidirmos o que fazer com cada coisa. Se assim não fosse, nossos desejos grandes não estariam nessa categoria e poderiam ser facilmente substituídos ou negligenciados. Os desejos que podem ser facilmente substituídos - exatamente por não serem grandes - nos fazem sempre mais ou menos, nunca inteiros - mais ou menos desejantes e mais ou menos não desejantes e, por isso, sempre pulando aqui, ali e acolá sem direção e definições; mais ou menos satisfeitos e mais ou menos insatisfeitos, mais ou menos consistentes e mais ou menos indolentes, mais ou menos alegres e mais ou menos tristes... sempre mais ou menos isso e mais ou menos aquilo. Ou seja, sempre pela metade - mornos, chatos, insossos e medíocres. E ouso dizer: frágeis, débeis, sem brilho, sem magnetismo, sem beleza e sem vida.

4) Os desejos grandes, por assim o serem, nos fazem mergulhar constantemente em severos testes - e sendo grandes como nossos desejos, depois das lutas e superações, passamos com louvor. Eles testam nossa força, nossa paciência, nossa persistência, nossas direções, nossa deteminação - às vezes, obstinação mesmo - e a validade e importância dos nossos próprios desejos. Eles testam nosso caráter, nossa dignidade, nossa sanidade, nossos princípios e valores morais, nossa essência e nossa beleza - conceito aqui muito além do físico e do que o senso comum propõe e cultua. Os desejos grandes testam nossa resistência, nossos limites e colocam todas as cartas na mesa, todos os pingos nos "is" acerca de quem verdadeiramente somos e da nossa capacidade para lutar ou não e superar ou não, com nobreza, força e coragem - também há quem escolha, nesse momento, a mediocridade, a fragilidade e a covardia - todas as adversidades, medos e limites para sabermos se, ao final da jornada seremos os vitoriosos que queremos mesmo aquilo que desejamos - porque nem todos querem mesmo aquilo que desejam - e o quanto somos grandes ou não diante desses nossos desejos grandes - e até mesmo se esses eram, são ou não desejos realmente grandes.

5) Desejar grande, voar alto, sonhar bonito, vencer as adversidades, os obstáculos e, não raro, as próprias limitações e imperfeições, superá-los com dignidade e beleza, aprimorarmo-nos, querermos sempre o melhor e fazermos sempre o belo são obras de almas grandes, as mesmas dos desejos grandes – alguns insistem em chamá-las loucas. Que seja. Mas vejo muito mais loucura em quem se contenta com sonhos poucos, rasos e pequenos; com pedaços, farelos, migalhas e restos. Vejo muito mais loucura em quem não tem aquela força bonita e aguerrida para enfrentar os desafios da vida, esmorece diante dos obstáculos e escolhe entregar a alma ao diabo e a dignidade à lama e à ruína. Vejo muito mais loucura em quem, tendo caminhos admiráveis para seguir, prefere caminhos obscuros e fétidos - na maioria das vezes, caminhos sem volta no que a subjetividade evoca. Vejo muito mais loucura no caráter torpe, nas farsas, nas mentiras, nas omissões e na estupidez - e, por consequência, na profunda e irremediável degradação humana que se desenha nesse cenário escuro, árido e triste. Vejo muito mais loucura na covardia, na falta de respeito e cuidado consigo mesmo, com o outro e com a vida. Enfim, vejo muito mais loucura em quem não é capaz de ser grande, de ter desejos grandes e de lutar bonito, limpo e com nobreza - seja em relação a si mesmo, ao outro ou à vida - com e contra as adversidades do caminho; com e contra limitações e imperfeições, com e contra alguns obstáculos, algumas frustrações ou decepções; com e contra medos e fantasmas e, por isso, tristemente, também não é capaz - talvez nunca - de ousar e vivenciar a superação e a vitória com beleza, garbo e elegância.

6) Somente os desejos grandes, esses que nos dizem quem somos, esses que nos instigam, nos colocam à prova, nos desconstroem para que possamos nos reconstruir, nos cutucam, nos interpelam e nos trazem dúvidas, perguntas sem respostas e insondáveis questionamentos, nos moldam e nos definem testam nossas atitudes perante nós mesmos e perante o mundo. É diante disso que mostramos quem somos. Somente os desejos grandes nos apresentam as devidas adversidades e desafios para avaliarmos com profundidade e honestidade nossa essência e o que estamos fazendo de nossas vidas e avaliarmos o valor do que nos é verdadeiramente importante. Somente eles, depois das adversidades e desafios, são capazes de provocar nossa “ira” interior de querer superá-los e vencê-los. Somente eles contém, em todos os sentidos, as verdadeiras coragem, nobreza e beleza em sua totalidade, promovem a fascinante e inigualável liberdade e a indescritível vitória bonita e magnânima de quem enfrentou e superou/venceu todos os leões, cisnes, guerras, gagueiras, fogo, tempestades, mutilações, perdas e mortes - inclusive as subjetivas.

7) Superações são somente para os desejos grandes das almas grandes e belas... dos sonhos grandes, do amor grande, da essência grande, dos voos grandes, dos cisnes grandes, das gagueiras grandes, do fogo grande, dos caminhos grandes, da coragem grande, do caráter grande, da força grande, das dignidades grandes, das atitudes grandes, das verdades grandes, da nobreza grande, da ousadia grande, das lutas grandes, das vitórias grandes, da elegância grande, da beleza grande, da vida grande.


Somente onde há sepulturas há também ressurreições.”


(Friedrich Nietzsche)

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

(RE)COMEÇAR

“Viver é afinar o instrumento, de dentro pra fora, de fora pra dentro. A toda hora, a todo momento, de dentro pra fora, de fora pra dentro.”(Walter Franco) - Imagem: Getty Images





RESISTÊNCIAS, MEDOS, MUDANÇAS... (RE)COMEÇO!!!



Por Veruska Queiroz



Há uns dias, à padaria, não pude deixar de ouvir duas pessoas conversando sobre uma tal prova de resistência de um famoso – e controverso – programa de uma emissora de televisão. A conversa girava em termos de considerações pessoais nas quais a discussão – bastante acalorada, por sinal – enfatizava o fato de que ter resistência - física e psicológica no caso - era mesmo algo muito difícil e muitos não estavam mesmo preparados para tal, enquanto outros pareciam vencer a resistência sem grandes problemas. Num outro ponto da conversa, discutiam sobre o fato de a resistência – naquele contexto específico - gerar medo: medo de, a partir daquele ponto, se estar mais visado, medo da responsabilidade e do peso que os atos poderiam ter a partir daquele instante.

Saí da padaria pensando no que ouvira e, embora meus pensamentos não estivessem mais no contexto da conversa daquelas duas pessoas sobre o tal programa de televisão tentei, apenas como exercício de raciocínio atrelar tais conceitos: resistência e medo, obviamente sob outros pontos contextuais. Com minhas sempre tão presentes divagações, outro conceito me veio à cabeça: mudanças – embora não soubesse, naquele momento, exatamente o porque. Até chegar à casa, fiquei tentando articular ou tentando um ponto de articulação – se pudesse mesmo haver algum – entre resistências, medos e mudanças, essa que acrescentei  e estava revirando meus pensamentos. Talvez a tenha acrescentado, possivelmente, entre outros motivos, por uma situação que sempre considerei marcante - o início de um novo ano - (re)começo - e as possibilidades de renovação que, para mim, sempre o acompanham. De acordo com os parâmentos e crenças de cada pessoa, um novo ano pode ser a chance de uma rotamada de sonhos, planos ou o (re)começo de algo ou mesmo um início novinho em folha de novas diretrizes de vida, seja em perspectiva interna ou externa. Fato é que, motivada por voltar a escrever logo no início do ano, a palavra mudança e sua significação ganharam corpo junto aos outros dois conceitos que fizeram meu caminho da padaria até à casa um verdadeiro cenário de profusão de idéias. 

Distando agora totalmente da conversa à padaria, se tomássemos como norteamento o senso comum ou apenas formas de pensar generalizadas, não ficaria difícil entendermos que sim, todos nós podemos apresentar vida afora, inúmeras resistências por medo de muitas situações e coisas e sabemos – ou, pelo menos, temos uma noção - que no momento em que decidirmos (ou conseguirmos) deixar essas resistências de lado – seja por qual motivo for - poderemos ter de enfrentar nossos medos e teremos de ter uma nova postura frente às condições que surgirem. Uma mudança pode ou não surgir daí – para melhor ou para pior - o que pode também acarretar mais medo e podemos voltar ao ponto da resistência anterior. Por exemplo: uma pessoa que tenha uma grande resistência em aprender a dirigir por medo de não saber controlar o carro numa situação de stress ou por medo da violência no trânsito. Essa pessoa pode ou não conseguir vencer essa resistência e seus medos. Se conseguir, ela sairá transformada, de alguma forma, desse processo e uma nova postura deverá ser adotada. Se não, ela poderá continuar presa aos medos e continuar a resistir. Também pode acontecer de decidirmos vencer as nossas resistências – ou parte delas, conseguirmos enfrentar alguns medos, adotarmos novas posturas de vida e nos prepararmos para as mudanças que se apresentarem a partir daí, com novas e outras resistências e novos e outros medos talvez, mas com a possibilidade de tranformações e porque não e também, (re)começos.

Enfim, uma série de situações cotidianas são possíveis quando pensamos em resistências, medos, mudanças e (re)começos e claro está que essas considerações são apenas generalizações. Dias depois, não pude deixar de continuar pensando se haveria alguma articulação teórica em que pudessem estar atrelados esses conceitos e algumas coisas bem interessantes surgiram.

De acordo com o Dicionário da Língua Portuguesa, etimologicamente o verbo resistir vem do latim resistere e significa “Opor força ou resistência a; não ceder, não se dobrar; opor força à força; defender-se; conservar-se firme e inabalável, não sucumbir; não aceder, negar-se, recusar-se; conservar-se, durar, subsistir.” Faces a essas significações, uma articulação entre elas e o conceito de resistência dentro da perspectiva psicanalítica tornou-se quase imediato. Conceitualmente, resistência para a psicanálise refere-se a tudo “o que  nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanalítico, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente.”(Laplanche e Pontalis, 1992) ou o “termo empregado para designar o conjunto das reações de um analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos ao desenrolar da análise.”(Elisabeth Roudinesco, 1998)

A resistência em psicanálise é parte de todo o processo de análise de uma pessoa. Ela é exatamente o que o seu conceito propõe, ou seja, uma força que resiste, uma oposição à produção do novo, uma tendência para a conservação do mesmo e uma evitação de qualquer tipo de mudança. Isso porque todo processo analítico e a psicanálise em si giram em torno da transformação sujetiva e de alguma forma de mudança e a resistência aparece como defesa - em relação ao recalque - que a pessoa usa para se proteger e afastar-se de qualquer perigo, ansiedade ou desprazer sentido por ela, até que possa, pouco a pouco ser trabalhada e superada. Para lidar com a resistência e com a compulsão à repetição há o manejo da transferência - que precisa ser bem trabalhada e conduzida, mas essa é uma outra inserção teórica de que não falarei aqui, embora a mesma seja de indiscutível e fundamental importância. Em suma, a prática analítica implica construção de novas formas de subjetividade e novas formas de lidar com os conflitos inerentes a todos e à vida e a resistência pressiona contra esse novo, até que seja capaz de ser melhor compreendida e, talvez até superada - se for o caso - depois de devidamente trabalhada e elaborada.

Dito isso, torna-se fácil compreender porque a resistência – seja na perspectiva psicanalítica ou na vida cotidiana - é tão forte: ir em direção ao novo, à novas formas de ser e estar no mundo não é tarefa das mais fáceis, estando uma pessoa em processo de análise ou não. O novo, o desconhecido, aquilo que não sabemos – e, por vezes, nem queremos saber, mesmo sabendo – provoca angústia, medo, sofrimento e, não raro dor. Mudar (de verdade) provoca desconforto porque mudar é, entre tantas coisas, mexer e remexer, alterar a ordem, sair da zona de conforto, dar a cara a tapa, desnudar-se, desvendar-se - com a possibilidade de desvendar o outro e o mundo também, desaprender para aprender de novo, ir ao encontro de – na maioria das vezes, ir de encontro a – dúvidas, incertezas, peguntas sem respostas, inesperados, dores passadas e presentes, angústias de ser, estar e existir, lugares escuros dentro e fora de nós e, não obstante, ir de encontro também a muitas dessas mesmas questões em relação aos que convivemos e mantemos algum tipo de vínculo relacional. Mudar provoca desconforto porque o processo de mudança vai nos "obrigando" a olhar necessariamente para dentro. E olhar para dentro não é tarefa para qualquer um, não. Não mesmo. Quando começamos a olhar para dentro, começamos a perceber que todas as nossas atitudes ou a falta delas terão sempre consequências e começamos a entender que nada nos ajudará - muito pelo contrário - se continuarmos no processo de esquivas, desculpas, justificativas, mentiras e omissões para transferir o peso dessas nossas atitudes e as consequências delas para os ombros de outras pessoas ou para a roda da vida. Mudar implicar maturidade, maior responsabilidade com a gente mesmo, com a vida que vivemos e com quem vive essa vida conosco. Sobretudo, mudar implica sermos capazes  - seja de que forma for - de enfrentar e superar todo esse desconforto, toda a inquietude que a angústia do medo provoca - seja medo do novo, medo da aceitação ou da rejeição, medo do vir-a-ser, medo do não vir-a-ser, medo do salto, medo do susto, medo do “outro lado” e até mesmo medo da própria mudança.

Mudar é inerente à vida. De acordo com a ciência, biologicamente falando, toda célula do corpo humano se regenera em média a cada sete anos. Portanto, somos literalmente novas pessoas a cada sete anos. Mudamos também de idade, de lugares, de pensamentos, de sentimentos, de conceitos, de paradigmas, de representações e de visões de mundo durante toda a nossa vida. Mudamos - para melhor ou para pior. A mudança em nós, nos outros, em tudo o que nos cerca e na vida é fato. Acontece que as mudanças subjetivas são mais difíceis, porque elas estão atreladas a muitas representações também subjetivas desde a nossa infância e conseguirmos derrubar as resistências - ou parte delas - que nos levariam a novas formas de ser, a novas subjetivações e a alguma forma de mudança e transformação requer que estejamos conscientes do enfrentamento dos nossos medos, dores e angústias. Esse enfrentamento, que é o próprio começo da mudança pode gerar conflitos, crises, dúvidas e, muitas vezes, vontade de permanecer no mesmo lugar – o que pode parecer paradoxal e seria um retrocesso à resistência, em certa medida. Temos que a resistência pode ser, ao mesmo tempo fator de mudança e de permanência a um mesmo estado. Mas, se conseguirmos ir além, quebrar a resistência – ou que seja, pelo menos, parte dela – enfrentar as angústias, as crises, o medo do salto e do novo, os sofrimentos e, não raro o caos que podem surgir dessa inicial desestabilização das coisas; o que pode surgir do outro lado, se estivermos mesmos dispostos a "pular o muro" é uma grandiosa e, não rara, feliz mudança, de acordo com as vivências de cada um. Com novas possibilidades, novos direcionamentos, novas visões, novos encantamentos e novas oportunidades. Lembro-me aqui de Nietzsche: "Eu vos digo: é preciso, às vezes, ter um pouco de caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante."      

E mudanças podem ser extremamente positivas quando elas estão na direção de descobrirmos e colocarmos para dançar novas formas de ser e estar no mundo. Mudanças são o oposto do estagnado, da poeira que juntamos e varremos para debaixo do tapete, do retrato bonito que enfeita nossa sala de estar. Mudanças são o avesso do vazio, de uma vida, muitas vezes infértil, se pensarmos nas muitas aberturas que elas trazem e no seu oposto. Mudança é coragem, novas perspectivas, novas expectativas, novos nós mesmos. Mudança não é o que contamos, mas o que vivemos, dia após dia, com alma, com atitude. Mudanças podem ser reinvenções de nós mesmos e de nossas vidas, recriações de novas posturas, novas visões da vida e novos pensamentos e sentimentos, novos rearranjos da música da vida. Mudança é vida. Novos modos de sentir, ver, agir e pensar o mundo. Enfim, mudanças podem ser belos e deliciosos começos ou - como queiram - (re)começos. Instigantes, desassossegados e desafiadores talvez, mas também - e quase sempre - fascinantes (re)começos.

“A invenção e a criação seriam então as resultantes maiores desse processo sempre recomeçado, na medida em que pressupõem, como sua condição concreta de possibilidade, a existência de uma subjetividade que possa ser permanentemente inventada e recriada contra um fundo homogeneizado de fixações estabelecidas” (Joel Birman, 2006)

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

"DO PRÍNCIPE AO SIM"

“O amor é a despeito, é além, é sobre, é apesar.”(Artur da Távola) - Imagem: Google Imagens





AMAR SE APRENDE AMANDO

Por Veruska Queiroz



“É preciso entender que união não significa, necessariamente, fusão.
E que amar, "solamente", não basta.
Entre homens e mulheres que acham que o amor é só poesia, tem que haver discernimento, pé no chão, racionalidade. Tem que saber que o amor pode  ser bom, pode durar para sempre, mas sozinho não dá conta do recado. O amor é grande mas não é dois.
É preciso convocar uma turma de sentimentos para amparar esse amor que carrega o ônus da onipotência.”(Artur da Távola)





Ah, o amor!!! Todos os seres humanos, alguns durante toda a vida – em fases e etapas ou ininterruptamente, - outros pelo menos alguma vez na vida - para não afligir ou melindrar as almas mais sensíveis (ou talvez àquelas nada sensíveis) – ou mesmo em algum momento específico, seja de carência, de sonho, de desejo ou de solidão já pensou em viver um amor. Grande, pequeno, cotidiano, normal, intenso, mágico, arrebatador ou não, para sempre ou só para um breve momento de alguns dias, meses, algumas horas ou minutos ou apenas uma relação utilitária ou necessária – sim, infelizmente na minha opinião, existem pessoas que vivem assim; o fato é que, encontrar alguém que faça nosso coração bater forte e descompassadamente,  alguém que nos faça revirar os olhos, nos faça cometer loucuras, entrar em transe e ficar o dia inteiro com aquela cara boba e sorridente reconhecida de longe como “o estado apaixonado” ainda parece ser, de longe, um dos desejos mais pungentes da humanidade.

Sim, existem inúmeras variáveis nesse discurso e diversas nuances nessa visão –  e a minha certamente parcial e talvez não tão impessoal assim. Mas, a verdade é que o amor – e a paixão - e tudo o que eles suscitam e envolvem ou colocam a baila para questionamentos percorrem as veias de todos nós, seja de qual forma for. Seja esse sentimento ou estágio de que falei entendido como paixão ou seja o amor – aquele real, que precisa de um aparato de outros para viver, conviver e sobreviver; fato é que esses sentimentos constituem a todos nós e são os motores de quase todas as transformações que conhecemos, tanto em nós mesmos como no mundo de uma forma geral.

Não, não estou falando do ideal do amor romântico. Ou, pelo menos não somente dele ou ainda não de uma única só vertente dentro do ideal do amor romântico, visto que certa dose de idealização é necessária e isso é fato. Em toda relação de amor, sempre idealizaremos(muito ou pouco) aquele que amamos. Sempre iremos atribuir ao nosso parceiro – e ele a nós - alguma qualidade extraordinária que ele não tem – e é esperado que possamos também atribuir a ele – e, de novo, ele a nós - outras tantas que de fato possuimos. Apaixonamo-nos exatamente porque damos ao outro qualidades que imaginamos nos nossos sonhos e devaneios. E isso é bom. Aliás, é inerente ao humano. Se assim não fosse, seríamos terreno árido para a convivência e nenhuma troca afetiva legítima, nenhuma transformação pessoal seriam possíveis – lembremos que somos sempre submetidos ao olhar do outro e atravessados por esse olhar, é através do outro e de seu olhar e desejo que nos (re)conhecemos.

O problema não está, penso eu, nas idealizações, já que elas são inerentes e, de certa forma e em certa medida, necessárias e boas. O problema parece estar exatamente na perspectiva de que, a partir das idealizações, o que encontraremos sempre será só e tão somente a frustração. Frustração essa que vai nos secar por dentro e produzir dores e decepções para todo o sempre tão profundas  que vai nos impossibilitar de lançar bons olhos novamente para as relações, novas ou não. Será mesmo? Será que as idealizações estão somente a esse serviço? E será que uma relação de amor continua sendo de amor se não idealizamos o parceiro? 

Assumindo o risco das frustrações e decepções(muitas ou poucas) oriundas das idealizações(muitas ou poucas) e aprendendo a administrá-las dentro de um espectro de acordos conscientes ou não, também ganhamos a perspectiva de sermos transformados exatamente por essas mesmas idealizações. Esse é o lado bom e isso pode ser profundamente engrandecedor. Se o outro idealiza em mim algumas características que provavelmente não tenho e eu abro possibilidades de realizações a partir daí, essa expectativa do outro em mim pode me transformar. O que o outro espera de mim, o que o outro lança sobre mim pode ser a alavanca para verdadeiras e maravilhosas transformações. “Na verdade, mudamos(para melhor ou para pior) sempre graças a algum outro que espera de nós uma mudança(...) Mudamos graças ao amor de quem nos idealiza, e assim nos estimula a mudar.”(Contardo Calligaris, 2004)

É aí que a perspectiva de se aprender a amar amando vai ganhando corpo: é somente no dia a dia, com todas as idealizações e, não obstante algumas frustrações e decepções, mas também com todas as possibilidades de transformações, que o verdadeiro amor nasce e encontra terreno fertilíssimo para se desenvolver, amadurecer e seguir forte e bonito. Jurandir Freire Costa brilhantemente nos “aconselha” em Sem Fraude nem Favor: “Renunciem a serem o Príncipe e a Cinderela, destinados a viverem felizes para sempre e encarem as trapalhadas que vierem.” Eu pediria licença a Jurandir e diria assim: Não vivam sempre como se fossem o Príncipe e a Cinderela destinados a viverem felizes para sempre, pois a vida é um pouco mais real e é preciso se equilibrar diante dos vôos e dos tropeços ou saber levantar depois das quedas, mas não é por isso que a relação deve ser desprovida de beleza e graciosidade - pode ser até mesmo super romântica e felicíssima se soubermos dosar bem a água e o fubá(como dizia minha avó). O Príncipe e a Princesa podem sim - e devem - em meio à vida real, ser muito felizes e divertirem-se muito juntos construindo dia após dia uma relação prazerosa e feliz, de acordo com seus próprios conceitos, parâmetros, paradigmas e dogmas de felicidade e prazer.  

Nessa construção diária o que vemos é que precisamos muito mais que amor somente para que a relação possa se sustentar em bases realmente sólidas. Sim, amor “solamente” não basta. Amor precisa de coragem, boa vontade e boa dose de ousadia para acontecer, para não cair no lugar comum, para passar pelas provas da convivência(tem um dito popular espanhol que diz mais ou menos assim: é preciso saber o que é e como comer juntos umas colheres de sal sem água para valorizar a boa comida e a sobremesa). O amor precisa de coragem, boa vontade e ousadia para aguentar as idealizações(muitas ou poucas), para não esmorecer diante das frustrações(muitas ou poucas) advindas dessas idealizações e para aguentar o próprio sentimento amor com tudo o que ele suscita.

Amor precisa de amor próprio. Amor precisa de respeito, afeto e confiança mútuos e genuínos, precisa de pé no chão – e pé fora dele também. Amor precisa de conversas - conversas sérias, conversas não sérias, conversas boas, muitas conversas. Amor precisa de sinceridade e honestidade inquestionáveis com o outro e principalmente consigo próprio. Amor precisa de retidão de caráter, de ética, de dignidade e de lealdade. Amor precisa de admiração. Amor precisa de comprometimento. Amor precisa de sorrisos largos e gargalhadas soltas. Amor precisa de espontaneidade, de leveza e de autenticidade. Amor precisa de muita afinidade e de sintonia fina. Amor precisa de projetos, planos e sonhos em comuns. Amor precisa de muitas semelhanças e algumas diferenças. Amor precisa de viagem - de carro, de avião, de trem, de navio e até mesmo de viagem sem sair do lugar. Amor precisa de novidades e inovações, mas precisa muitíssimo também da rotina e do cotidiano. Amor precisa de códigos inventados e pactos secretos que só o casal sabe o que significam. Amor precisa de almoxarifado e lixeira. Amor precisa de perdão. Amor precisa de olhar, de toque, de palavra, de boca, de gestos, de sede, de sofreguidão, de urgência, de paz, de inquietude, de poesia e de silêncio. Amor precisa de mãos dadas, abraços apertados, rostos colados e corpos ardendo de desejo. Amor precisa de busca constante. Amor precisa de sol, de água, de luz e de ar fresco. Amor precisa de revisões e renovações. Amor precisa de recriação. Amor precisa de subjetividade e inconsciente. Amor precisa de pele e química. Amor precisa de individualidade, de um pouco daquela solidão boa e necessária, mas precisa muito mais de cumplicidade, de doação, de entrega, de união. Amor precisa de alma. Amor precisa de amizade, de confidências e de segredos juntos. Amor precisa de cuidados, de carinhos e de advinhação. Amor precisa de postura bonita e justa quando as opiniões divergirem ou o sangue esquentar. Amor precisa de aceitação e de tolerância, principalmente de cada um em relação a si mesmo. Quem não aceita as próprias imperfeições e não tem tolerância com as  próprias limitações, provavelmente não saberá como fazer quando o outro se apresentar dessas maneiras. Amor precisa de muitas estórias juntos para se contar a si mesmo. Amor precisa de sabedoria, de elegância, de beleza e sobretudo e irrefutavelmente de inteligência.

Em suma, amor precisa de AMOR. Seja como for - porque ninguém vai poder mesmo fugir às loucuras maravilhosas ou doidivanas que o amor trás em si - se você quiser amar(muito ou pouco, para sempre ou não), saiba que dentre toda a literatura a respeito, dentre todos os seríssimos estudos de pessoas altamente capacitadas e dentre todos os postulados... além, apesar e sobre todas as perspectivas e expectativas, amar ainda se aprende de uma única forma: amando.

sábado, 28 de agosto de 2010

SOU PLURAL

“Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração, assim falava a canção que na América ouvi...”(Milton Nascimento) - Imagem: Google Imagens




É AMIZADE! E DA VERDADEIRA!

Por Veruska Queiroz



“Ah, esse fenômeno instigante, o das amizades que se mantêm independentes da convivência. Amizade anda de mãos dadas com a afinidade. Afinidade é um dos poucos sentimentos que resistem ao tempo e ao depois. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido. Afinidade é não haver tempo mediando a vida. Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças. É conversar no silêncio, tanto nas possibilidades exercidas quanto nas impossibilidade vividas. Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou sem lamentar o tempo de separação. Porque tempo e separação nunca existiram. Foram apenas oportunidades dadas (ou tiradas) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar. E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais a expressão do outro sob a forma ampliada do eu individual aprimorado. Afinidade é um dos combustíveis da amizade. E o mistério da amizade talvez resida no alívio que traz a existência de alguém que nos acolha. Acolher significa receber de bom grado, previamente, sem julgamentos ou resistências. Com os anos, vão se tornando escassas as amizades que atravessaram o terreno íntimo que lhes é próprio sem arranhões e sem mágoas, restando, como fruto, após ingentes experiências humanas e existenciais, apenas (e já é tanto...) a amizade. Amizade é o que resta da amizade. Se o que resta de uma amizade é amizade, então amizade é. Da verdadeira!”(Artur da Távola)


Há alguns dias li um texto lindo sobre amizade. Mais especificamente sobre amizade entre mulheres. Assunto incômodo para alguns, hipócrita para outros, um mero substrato de afirmação disso ou daquilo para os que não acreditam nem em si mesmos e ainda um assunto que cheira à falsidade, rivalidade e competição para quem talvez – e lamentavelmente na minha opinião - nunca tenha tido uma amizade verdadeira. Não posso falar sobre essas considerações ou pontuações e muito menos lançar juízo de valor sobre quem as defende, exatamente porque minhas experiências - salvo raríssimas exceções que se mostraram débeis, frágeis e, por isso mesmo, passaram como passa o tempo - foram e são muito bonitas e enriquecedoras. Fico, então, com o que essas minhas experiências e todas as minhas vivências nesse sentido me deram, ou seja, os laços de amizade e amor entre mulheres existem, são fortes, verdadeiros, capazes de irromper o tempo, a distância e o espaço, nos fazem mais conscientes de quem somos e de quem é o outro e trazem consigo imensos aprendizados, enormes alegrias, uma paz docemente reconfortante e uma felicidade indescritível.

Talvez minha vontade de falar sobre esse assunto que me toca o coração de verdade venha da imensa saudade que já há algum tempinho sinto de todas as minhas amigas que a vida se encarregou de “espalhar” por aí. Amigas de infância e adolescência, crescendo juntas, aprendendo juntas, estudando juntas no mesmo colégio por anos, fazendo ballet, jazz e sapateado juntas; com sonhos, experiências, projetos e realidades semelhantes, frequentando os mesmos ambientes sociais e culturais numa cidade charmosíssima do interior... com essas amigas lindas já caminho há 33 anos. Outras amigas chegaram quando também chegou minha vontade irrefreável de voar mais alto e por novas paisagens, de experimentar novos sabores, ver novas cores, atrelar minha alma a outras novas almas para agregar novos aprendizados àqueles que continuavam sendo regados sempre, me fazendo crescer constantemente... essas amizades já são cultivadas há 19, 20 anos. Nesse meio tempo, num outro jardim nasciam duas florzinhas que seriam outros dos meus grandes amores para a vida toda: a primeira floresceu há 18 anos e a segunda há 16 e com essas duas, para minha felicidade, veio junto a semente linda e forte que as gerou. Nessa mesma estrada, alguns quilômetros adiante, uma amiga também chegou falando de coisas lindas em dias gelados junto à lareira e há 14 anos acredito de verdade em anjos e querubins. Ainda outras amigas fizeram paragem no exato momento em que algumas mudanças - mesmo temporárias - se fizeram necessárias e, com elas também aprendo a ser melhor a cada dia, há 9 anos. E ainda há minha amiga-irmã/irmã-amiga que ganhei de presente antes mesmo de me saber um ser nessa viagem linda de viver e que, mesmo longe geograficamente permanece sempre perto através da presença em forma de amor, palavras lindas, apoio e afeto genuínos. Também não posso esquecer-me de todas aquelas amizades lindas, sinceras e enriquecedoras que chegam e vão embora ao sabor do vento ou chegam e permanecem durante um tempo determinado - porque tem mesmo de ser assim - com algumas missões que só compreenderemos mais tarde e deixam um rastro, principalmente, de ensinamento, beleza e crescimento. Também há aquelas que não são propriamente amizades no início e vão conquistando seu espaço com beleza, elegância, retidão de caráter, ética, brilho nos olhos, pureza de alma e de coração, sensibilidade e sinceridade. Aos poucos, o que era companhia eventual de uma ou outra vivência, se transforma também na mais bela e verdadeira amizade. Tenho me surpreendido lindamente com pessoas assim. E devo dizer que sou extremamente agradecida à vida e sou mesmo uma pessoa de muita sorte e privilegiada nesse sentido - algumas pessoas chamam isso de merecimento... vai saber...

Sim, tenho amigas verdadeiras e lindas. De todas as idades, de todos os lugares. O número exato do tamanho do meu amor, da minha devoção, do meu afeto, da minha inquietude, das minhas perguntas e respostas, das minhas imperfeiçoes, da minha lucidez, do meu silêncio e do meu grito, das minhas certezas e dúvidas, das minhas convicções e aprendizados, da minha loucura e da minha mais plena felicidade. E elas ocupam lugares especiais em meu coração. Lugares trabalhados, lugares conquistados, lugares cheios de muitas coisas vividas e compartilhadas... muitas alegrias, muitas risadas, muitas descobertas, sofrimentos divididos, angústias partilhadas, derrotas consoladas, vitórias aplaudidas, joelhos esfolados, corações partidos e recuperados, amores conquistados, sufocos em dias de prova, diante das peraltices da juventude ou diante daquela gravidez não programada que trouxe o amadurecimento para todas mais cedo do que o previsto, ansiedade nos dias daquelas festas, coração aos pulos diante das saídas, aniversários e bailes de reveillon. Liberdade e tranquilidade para expor as fraquezas e chorar, firmeza amorosa para os puxões de orelhas, generosidade para perceber as falhas e delicadeza, sensibilidade e sabedoria para apontá-las, compreensão dos erros, reconhecimento das qualidades e elogios sinceros. Expectativa da aprovação do vestibular, acompanhamento dos longos anos de sorrisos e lágrimas desse percurso e a felicidade das formaturas. Participação ativa e constante da vida profissional umas das outras, das realizações pessoais, do crescimento emocional, do aprimoramento espiritual, dos vários relacionamentos que começam e terminam e daqueles que chegam para ficar, dos casamentos, dos nascimentos e crescimento dos filhos, das separações e até das novas uniões em seus novos formatos, ou não. Ombro nas decepções e mazelas da vida, as quais, muitas vezes não escapamos; apoio nos momentos de dúvida, amparo nos momentos de dor, palavras e gestos nos momentos de solidão, colo nos momentos de crise existencial, compreensão nos momentos de insensatez, olhos brilhando, sorrisos e flores nos momentos de felicidade e aquela presença linda que, mesmo na ausência física diz: “eu sou sua amiga e estou com você e ao seu lado para tudo e para sempre e você pode contar sempre comigo.”

Não precisamos nos falar sempre, não precisamos cumprir nenhum ritual e não precisamos de comprovação de lealdade porque ela existe por si só como direção, causa e consequência dos próprios códigos da amizade. Não precisamos provar isso ou aquilo nem a nós mesmas nem a ninguém e não precisamos testar nosso legítimo afeto em nenhuma prova de fogo. Não temos motivos para competirmos umas com as outras, não encontramos sentido em nos rivalizarmos, não barganhamos sentimentos, não esfarelamo-nos em disputas e não temos absolutamente nenhum motivo para invejar-nos, pois entendemos a falta de maturidade e, não raro, a falta de inteligência e elegância que essa postura elucida e, principalmente, entendemos que cada vida é unica e belíssima em sua singularidade - cada pessoa tem suas metas, desejos, ambições e sonhos e, mesmo que alguns deles, às vezes, possam se assemelhar, essas são nuances imensuráveis e, por isso mesmo, fogem a qualquer inserção da inveja e de sua natureza vil e destrutiva. Não conseguimos entender - e certamente é motivo para um rompimento definitivo - a furada de olho, a puxada de tapete, o disse que me disse, a leviandade e a falta de comprometimento com a relação e com tudo o que diz respeito a ela e, evidentemente, compreendemos menos ainda o veneno ácido - às vezes lançado de forma sutil e velada, o que lhe garante o posto de imensamente mais repugnante, naturalmente - que faz proliferar o lodo fétido ao redor de quem o detém. Não admitimos, repudiamos e não perdoamos em hipótese nenhuma a falta de caráter, a deslealdade, a traição, a falta de escrúpulos e de ética e, decididamente, não conseguimos (con)viver com sorrisos amarelos, armaduras, escudos, dentes e garras afiados e espadas e lanças nas mãos. Não há densidade, não há cansaço, não há preguiça, não há nós e correntes, não há julgamentos, não há resistências, não há medos, não há sobresaltos, não há ataques nem defesas, não há manipulações, não há infantilidades mal resolvidas nem vitimizações pueris... não há senãos. Há somente e tanto, a amizade verdadeira. Somos amigas e isso preenche todos os espaços, lacunas, pensamentos, sentimentos e ações a despeito do tempo, das distâncias, dos adiamentos, das diferenças e semelhanças, do caminho seguido e de tudo o que aconteceu, acontece ou possa vir a acontecer nesse caminho.

Somos amigas não somente porque crescemos juntas ou coisa parecida, porque tivemos ou temos interesses ou atividades em comum; ou por termos níveis sociais e/ou econômicos e/ou culturais semelhantes ou porque as pessoas física e psiquicamente saudáveis tendem, de certa forma e em certa medida, a criar laços de afeto com seus semelhantes. Algumas dessas características isoladas ou mesmo todas elas juntas seriam absolutamente insuficientes para justificar o surgimento e, principalmente a manutenção da amizade entre mulheres e, não obstante, de uma natureza extremamente empobrecida. E, o mais importante, ainda não explicariam porque algumas mulheres tem e mantém suas amizades com outras mulheres e outras simplesmente não conseguem isso, a despeito de todo esforço que façam, às vezes, ao longo de uma vida inteira. Penso que a amizade ou não entre mulheres ou ainda, a facilidade ou dificuldade de algumas mulheres em fazerem e manterem amizades com outras mulheres se deem por uma série de razões mais ou menos entrelaçadas e interligadas, mas, certamente, uma das direções mais notáveis aponta para o fato de que somos amigas de outras mulheres porque aprendemos a amar, a aceitar sermos amadas e não temos porque ter medos, defesas, reservas, distâncias e desconfianças desse amor.

Numa perspectiva psicanalítica, poderíamos nos enveredar pelas questões e equações da afetividade, da feminilidade e da grande questão edípica. Sabemos que falar em feminilidade é falar também em falta, em desamparo e para que a feminilidade irrompa para além do “seu lugar” é necessário que ela arrisque movimentos para não sabe-se onde, que não haja uma "obsessão' em evitar a castração para que se possa aceitar correr o risco de esbarrar na angústia, deixar-se afetar e ir mais além. Na íntima relação entre feminilidade, castração e afetividade algumas mulheres simplesmente não conseguem esse “ir mais além”, pois o enfrentamento da extrema angústia que a castração traz em si não se faz possível. Em relação à castração, a mulher fica diante da inscrição indelével de uma perda que já se realizou e sua batalha – para algumas, muitas vezes já perdida – é reconhecer-se a si mesma. Para confrontar o desafio de torna-se mulher é imperativo elaborar simbolicamente o verdadeiro sentido de sua castração e poder assumi-lo. Dessa forma, a castração passa a ser vislumbrada como promessa quando a menina/mulher descobre, numa figura feminina - seja da mãe ou de quem cumpre sua função - um ideal de ego, com o qual possa se identificar. Quando evitar a castração é a única forma possível de se viver, a alteridade fica extremamente comprometida e não há a possibilidade desse atravessamento, desse reconhecimento de si mesma como mulher e, conseqüentemente, há impossibilidade de reconhecimento do outro e mais ainda, de uma outra mulher. Daí ser também impossível uma amizade verdadeira com outra mulher, pois um dos aspectos para os quais aponta a castração é exatamente a aceitação ou não da superioridade de uma rival (a mãe ou quem a representava) e a identificação posterior com ela. A afetividade, então, é deslocada ou transformada e, dessa forma, na vida adulta, pode ser que essa mulher, efetivamente não consiga nunca criar laços profundos, verdadeiros e duradouros com nenhuma mulher.
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P.S.: A todas as minhas amigas verdadeiras, lindas e inigualáveis!!! Amo todas vocês!!!
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"A gente não faz amigos, reconhece-os."
(Garth Henrichs)

domingo, 28 de março de 2010

LIMPEZA DE CHAMINÉ.

“Procuro uma palavra que me salve(...) Toda palavra deve ser anunciada e ouvida(...) Toda palavra é bem dita e bem vinda.”(Viviane Mosé) - Imagem: Getty Images




A MAGIA DA PALAVRA


Por Veruska Queiroz



“E Marcelo continuou pensando: ‘Pois é, está tudo errado! Bola é bola porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E por que será que a bola não é mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também agora eu só vou falar assim(...) O pai de Marcelo resolveu conversar com ele: -- Marcelo, todas as coisas tem um nome. E todo mundo tem que chamar pelo mesmo nome porque, senão, ninguém se entende... –Não acho papai. Por que é que eu não posso inventar o nome das coisas?” (Ruth Rocha, in: Marcelo, marmelo, martelo, 1978)

É engraçado... Se não me falha a memória, eu devo ter lido esse livro na época da alfabetização e nunca mais me esqueci dele. Adorei aquela coisa toda das trocas das palavras. Para mim, tal como para o personagem, fazia total sentido as palavras possuirem outros nomes mais 'adequados'. Ficou em mim a fascinação por esse mundo das letrinhas e até hoje, às vezes, me pego rindo sozinha imaginado como seria se pudéssemos mesmo viver trocando as palavras ao nosso bel prazer como o Marcelo do livro. Também foi por causa das palavras – derivadas da falta de compreensão, segundo ele mesmo - que o pobrezinho do Pequeno Príncipe (1991) se decepcionou tanto com as pessoas grandes: “Mostrei minha obra prima às pessoas grandes e perguntei se o meu desenho lhes fazia medo. Respondera-me: ‘Por que é que um chapéu faria medo?’ Meu desenho não representava um chapéu. Representava uma jibóia digerindo um elefante. Desenhei então o interior da jibóia, a fim de que as pessoas grandes pudessem compreender. Elas têm sempre necessidade de explicações.”

A palavra marca a efetiva entrada do sujeito no mundo da linguagem e consequentemente no mundo da cultura, embora desde o nascimento e mesmo antes dele essa inserção já aconteça, de certa forma. É através das palavras, na grande maioria dos casos, que escutamos as vozes daqueles que primeiro iremos amar e de todos com os quais iremos formar vínculos e conviver. É através das palavras que começamos a perceber o mundo a nossa volta, adquirindo habilidade e treinando nosso discernimento em relação às regras, normas, leis e limites nossos e do outro. A palavra nos situa, nos diz quem somos e quem é o outro. A palavra nos lança ao olhar e ao desejo do outro. A palavra marca a diferença. A palavra tem uma dimensão tentadora, tem o poder de encantar, enfeitiçar e seduzir. A palavra nos coloca no centro ou à margem. Palavras são o meio universal de comunicarmos nossas intenções, nossos sentimentos, nossos pensamentos, nossas alegrias, nossas dores e é através dela que estamos o tempo todo nos influenciando uns aos outros. Freud em suas “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise”(1996[1915-1916], vol XV) já dizia: “Nada acontece em um tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o paciente e o analista(...) As palavras, originalmente eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles.” Em suma, a palavra não somente diz sobre as coisas, mas também as transformam. As crianças, os poetas e as bruxas de outrora (e as de hoje também, porque não?) sabem muito bem disso.

As crianças sabem que ao simples pronunciar da palavra “Pirlimpimpim” a mágica é feita e de cartolas pretas saem coelhos, rosas brancas viram lindas pombas e a ajudante do mágico é cortada em duas ou três partes para depois aparecer inteira do outro lado. A um simples “Abre-te Sésamo” uma montanha mágica se abre e lá está o tesouro. A palavra, para a criança, permite que uma série de representações do mundo real e da fantasia sejam elaboradas no sentido de sua própria constituição como sujeito. Já para os poetas, as palavras são o corpo e a alma de seus pensamentos e sentimentos. É através das palavras e por causa delas que o poeta existe e existe sua poesia. As palavras de um poeta são sua expressão máxima, o nascimento e perpetuação de sua obra e de si mesmo. A história não poderia ser contada sem as palavras. Foi também por causa das palavras que milhares de mulheres foram torturadas e mortas na Idade Média, acusadas de bruxaria, pois, para criá-la, segundo a crença que a teoriza, bastava falar. As bruxarias eram feitas e consumadas pelo poder das palavras. No livro “O Martelo das Feiticeiras” (2004), os inquisidores medievais e autores do livro H.Kramer e J.Sprenger escrevem: “pela força terrível de suas palavras mágicas, como por um gole de veneno, conseguem destruir a vida.”

Toda palavra carrega uma maravilha e, ao mesmo tempo, um estranhamento, pois ela tem em si o poder de dizer aquilo que se pretende e também outra coisa que não aquilo que comumente se entende. Ela pode nomear o que sabemos e ao mesmo tempo o que não sabemos ou o que nem se pode dizer ou ainda o que nem ao menos queremos saber, sabendo ou não. É com palavras que criamos nosso mundo, convivemos, dizemos o que estamos pensando, sentindo e o que queremos ou não em dado instante. Exceto no setting analítico, é preciso muito cuidado com as palavras. A palavra certa ou errada, dita desse ou daquele modo é capaz de mudar sozinha, em segundos, tudo a sua volta. A palavra, como tudo o que existe tem e gera energia. A palavra cria. A palavra enaltece. A palavra fere. A palavra fortalece. A palavra destrói. A palavra ensina. A palavra constrói. A palavra encoraja. A palavra ilumina. A palavra transforma. A palavra cura.

E foi justamente pelas palavras que curam que a psicanálise foi fundada. Em 1895, Freud escreve com J.Breuer, “Estudos sobre a Histeria” propondo o método catártico como um novo tratamento para as doenças mentais. Eram apenas os primeiros passos da psicanálise e muito da teoria, do método e do tratamento ainda seriam estudados e postulados, mas com Anna O.(pseudônimo da mais famosa paciente da psicanálise - Bertha Pappenheim), a cura pela fala ou “talking cure” estava inaugurada. J.Breuer começou o tratamento de Anna O. usando a hipnose. Ao falar sobre as experiências durante a hipnose, frequentemente ela se sentia aliviada dos sintomas. Ela relatava os incidentes perturbadores ocorridos durante o dia e, depois de falar, algumas vezes alegava sentir-se aliviada dos sintomas. Ela se referia às conversas como "Chimney-sweeping" - limpeza de chaminé - ou o que chamou de 'cura pela fala'. Mais tarde, porém, Freud acabou abandonando a hipnose alegando que seus resultados eram pouco satisfatórios e que grande parte dos seus pacientes apresentava resistência ao método. Outra paciente, Emmy Von N. leva Freud a inaugurar um método – a regra fundamental da psicanálise – que seria constitutivo da teoria psicanalítica: o Método da Livre Associação. Freud (1996[ 1893-1895], vol II) escreve: “Disse-me então, num claro tom de queixa, que eu não devia continuar a perguntar-lhe de onde provinha isso ou aquilo, mas que a deixasse contar-me o que tinha a dizer.” Ao deixar que seus pacientes associassem livremente, Freud encontra a via de acesso ao inconsciente, permitindo que o sujeito atribua um saber sobre seu sintoma, emergido na palavra falada.

Nesse sentido, é através das palavras, quando a fala livre é suscitada, que o sujeito irá implicar-se na direção de seu tratamento e descobrir por si mesmo a sua verdade e seu modo de ser e de atuar no mundo, com mais liberdade para nomear o seu sentido de vida, dando-lhe a direção e o gerenciamento que melhor couber em suas tão particulares conceituações do seu bem viver.
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"A Psicanálise é um método de pesquisa da verdade individual para além dos acontecimentos cuja realidade não tem outro sentido para um sujeito salvo a maneira pela qual ele lhe foi associado e por ela modificado. Através do método de dizer tudo a quem tudo escuta, a capacidade de encontrar-se revela-se a ele e a função simbólica específica da condição humana nele se organiza como linguagem. Essa linguagem, portadora de sentido singular se apresenta diante da escuta única do psicanalista - uma escuta no sentido pleno do termo - e o discurso do analisando se modifica adquirindo um sentido novo aos seus próprios ouvidos. Além das palavras e do discurso que o psicanalista escuta, atrelada a teoria e à técnica, estão a sua percepção e a sua sensibilidade receptiva que permite-lhe entender em vários níveis o sentindo emocional subjacente do seu paciente. Ao promover essa escuta diferenciada ao longo do tratamento, o psicanalista, suscita a verdade do sujeito e, com isso, suscita, ao mesmo tempo, o sujeito e sua verdade. Esse é o caminho pelo qual o sujeito descobrirá, por si mesmo, sua verdade e, a partir daí encontrará seu sentido diante de si mesmo, dos outros e do mundo que o cerca." (Maud Mannoni, 1981; grifos meus)