segunda-feira, 16 de março de 2009

O PIOR MAL

“É sempre com as melhores intenções que se faz o pior” (O.Wilde) - Imagem: Google Imagens




A AMARGA AVERSÃO A SI MESMO

Por Veruska Queiroz

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“A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa; ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas [...] a palidez cobre seu rosto, seu corpo é descarnado, o olhar não se fixa em parte alguma. Tem os dentes manchados de tártaro, o seio esverdeado pela bile, a língua úmida de veneno. Assiste com despeito o sucesso dos homens e esse espetáculo a corrói; ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesmo, e este é seu suplício”. (P.Ovídio Nasão)
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Você já deve ter ouvido falar de pessoas “seca pimenteiras”, não? Pessoas que, literalmente, secam as flores para as quais olham. Você já deve ter conhecido alguém que sempre está desejando possuir o que é do outro ou ser o outro ou, numa perspectiva mais complexa, desejando que o outro não tenha ou não seja. E, é claro, você sabe como essas pessoas costumam ser chamadas.

Mas, afinal, o que seria esse sentimento de querer o que é do outro ou querer que o outro não tenha? Vamos, então, começar definindo-o. Segundo o Dicionário Aurélio da Lingua Portuguesa, inveja significa, “desgosto ou pesar pelo bem ou pela felicidade de outrem. Desejo violento de possuir o bem alheio”. Em outros termos, sentir inveja está associado ao desejo, algumas vezes inconsciente, de querer para si o que é do outro ou não querer que o outro possua ou seja aquilo que lhe desperta desejo. Etimologicamente, a palavra inveja vem do latim “invidia” que provém do verbo “invideo” – olhar maldosamente, olhar atravessado ou com despeito, lançar um olhar mau (daí a expressão popular “mau-olhado”).

O que será que move pessoas que se sentem assim em relação aos outros? Podemos começar a elucidar a questão entendendo a inveja, em sua complexa dinâmica como uma patologia, uma doença. Nesse contexto, de acordo com a teoria e a clínica psiquiátrica, recentemente, alguns estudiosos tem defendido, inclusive, a posição de colocá-la em evidência no DSM.IV (1994) - (DSM.IV TR, 2002), afirmando que ela seria uma das características diagnósticas do Transtorno de Personalidade Anti-Social. A pessoa então, estaria doente de sua (in)capacidade na inadequação de sua própria imagem e de seus desejos, que só encontram voz na comparação com o outro, na tentativa sempre frustrada de encontrar algum reconhecimento e valor, embora o comportamento externo possa "dar a impressão" de alguém muito bem adaptado, sensato e equilibrado. Muitas vezes, essas pessoas precisam lançar mão da manipulação, da vitimização e do engodo ou ainda da violação dos direitos do outro, da destruição dos bens e de alguma forma de propriedade do outro, seja de maneira concreta ou até subjetiva, do desrespeito aos desejos e sentimentos alheios, usando como subterfúgio a falsidade e o fingimento, a fim de suprirem algo que lhes faltam e de obterem vantagens pessoais, financeiras, profissionais, sociais, etc.

Tomarei aqui em meu auxílio, uma conceituação de São Tomás de Aquino (2001), que fala da inveja “como uma tristeza, como um sentimento de infelicidade diante da felicidade alheia, ou da felicidade diante da infelicidade alheia”. O invejoso não somente e necessariamente quer o que o outro tem, não somente e necessariamente quer destruir o outro, embora possa fazê-lo através de críticas, depreciações, intrigas, maledicências ou mesmo concretamente. O que o invejoso realmente quer é que o outro não tenha. Gosto muito desta aproximação entre a inveja e a tristeza feita por São Tomás de Aquino, pois penso que a inveja seja da ordem da impotência, do sentimento de insuficiência e de inferioridade. Em seus recônditos mais íntimos, mesmo de forma inconsciente, o sujeito se sabe e se sente inferior e incapaz.

Numa perspectiva psicanalítica, a inveja se origina da constatação de uma falta no sujeito, por comparação com um outro, possuidor do objeto ou da característica desejada. Ela inaugura um movimento para diante, tanto no sentido de tentar obter o que falta quanto no de destruir o que pertence ao outro de modo a eliminar, pelo menos, a dor da comparação e as diferenças. A comparação é o mecanismo responsável pelos ressentimentos dos invejosos. Maria Rita Kehl (2004), em seu livro “Ressentimento”, faz uma articulação muito interessante entre a inveja e esse, concluindo que o processo da inveja no sujeito desemboca sempre no ressentimento. Nesse contexto, esse mecanismo do ressentimento é, muitas vezes, bem sutil e encoberto, porque aquele que se sente inferior aos outros (pela comparação) e incapaz, na maioria das vezes, sente uma profunda aversão a si mesmo, mas precisa se esconder e esconder seus sentimentos ressentidos. Na tentativa de camuflar desesperadamente sua inferioridade e compensar o extremo mal estar que esse sentimento provoca, a saída passa a ser tentar obter a qualquer custo o objeto desejado/odiado. A partir daí surge também o desejo de destruí-lo, pois ele denuncia a incapacidade daquele que inveja. É uma maneira de nivelar por baixo: se não se pode ter ou ser, o outro também não terá e não será, então parte-se para “destruir” o que esse outro tem ou é, porque ele (o outro) não pode ter o que o invejoso não tem e não possui capacidade para ter e não pode ser o que o invejoso não é e não possui capacidade para ser. A inveja, portanto, será SEMPRE da ordem de um ataque ao outro - de forma direta ou mais comumente, de forma disfarçada e dissimulada - pois trata-se de fazer qualquer coisa para que o outro não tenha ou não seja - já que há a constatação de uma falta e da incapacidade de ter ou ser - e, não obstante, de regozijar-se com a infelicidade desse outro.

Nesse contexto, se o viés psicanalítico suscita algumas considerações, como vimos, a filosofia também nos deixa suas contribuições. Spinoza (2007), por exemplo, definia a “inveja como sendo a tristeza que se torna ódio e o ódio nunca pode ser bom”. Kant (2004) qualifica a inveja como “um dos vícios da misantropia, diretamente oposto à filantropia”. Já Schopenhauer (1980) considerava ser “natural e mesmo inevitável que o homem, na contemplação do prazer e da propriedade alheios, sinta amargamente sua própria carência; apenas, isto não deveria erguer seu ódio contra o felizardo, mas precisamente nisto é que consiste a inveja”. No vislumbrar de Francis Bacon (2007), "a inveja é a paixão encoberta e dolorosa para quem a sente em busca de algo que nunca chegará, assistindo ao progresso alheio corroendo-se por dentro". E, para finalizar esse apanhado de considerações filosóficas sobre a inveja, temos Diderot (2000), escrevendo que “a inteligência, a felicidade e o talento são imperdoáveis", numa clara alusão à negativa do invejoso de aceitar as qualidades dos outros e, conseqüentemente, da sua necessidade de destruir aquilo que não é capaz de conquistar, ter ou ser.

O tema da inveja é recorrente e encontra corolário por toda parte, sendo que, o maior deles incide sobre o próprio invejoso, pois sua inveja, desde o princípio dos tempos, se por um lado, pode encontrar possibilidades de tumultuar temporariamente a vida das pessoas invejadas, esse tumulto acaba disperso pela figura insignificante, doente, inferior e desprezível que o próprio invejoso desenha de si mesmo. Por outro lado, de modo mais incisivo, perturbador e permanente (e aí está o bate volta de seus atos e seu pior castigo), não o transforma na pessoa-alvo de sua inveja com tudo o que se invejou e não o transforma numa pessoa de auto-estima elevada, nem autoconfiante, nem bonito, nem inteligente, nem elegante, nem sofisticado, nem de humor refinado, nem rico, nem amado, etc e muito menos retira de si a amarga aversão a si mesmo, nem a inferioridade de seu ser, seus maiores suplício e prisão, mesmo que ele não tenha consciência disso.

Trago a mensagem de outro pensador que, se não dá uma solução para a inveja, pelos menos aponta uma forma de manejar com ela em nosso proveito. A citação é do escritor italiano Giovanni Papini (1986): "A inveja é a sombra obrigatória do gênio e da glória, e os invejosos não passam, de forma odiosa, de admiradores rebeldes e testemunhas involuntárias. Posso mesmo estar-lhes, com frequência, gratos pelo fato de o veneno da inveja ser, para os indolentes, um vinho generoso que confere novo vigor para novas obras e novas conquistas. A melhor vingança contra aqueles que me pretendem rebaixar consiste em ensaiar um voo para um cume mais elevado. E talvez não subisse tanto sem o impulso de quem me queria por terra. O indivíduo verdadeiramente sagaz faz mais: serve-se da própria difamação para retocar melhor o seu retrato e suprimir as sombras que lhe afetam a luz. O invejoso torna-se, sem querer, o colaborador da sua perfeição."

Portanto, tentemos fazer o que nos “aconselha” Papini. Tornemos os invejosos nossos colaboradores e façamos de sua falta de inteligência e total incapacidade de ter ou ser, de suas críticas, de suas tentativas frustradas de nos alfinetar e nos prejudicar e de suas injúrias um trampolim para seguirmos adiante sem perdermos tempo com essas pobres e infelizes almas e conseguirmos atingir objetivos cada vez mais elevados. Porém, se mesmo assim isso não bastar, não custa nada continuar usando os velhos e sempre poderosos ramo de arruda atrás da orelha, alho e muito sal grosso, pois, parafraseando os espanhóis, “Eu não creio em invejosos, mas que existem, existem”.