segunda-feira, 2 de março de 2009

NÃO É APENAS UM SONHO

"Podemos facilmente entender ou perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando encontramos homens que têm medo da luz." (Platão) - Imagem: Corbis Images





VIVER SOMENTE, NÃO BASTA


Por Veruska Queiroz


Qual é a saída para as pessoas que querem ver realizados seus sonhos mais íntimos, não se limitam, que fogem dos estereótipos, que preferem as febres de uma vida vivida intensamente, mas com verdade, coragem e realização à uma vida onde a maquiagem é o personagem principal e a realização se esconde atrás da falsidade do comodismo confortável e do falseamento da própria felicidade e da vida?

Essas são somente algumas perguntas que rondam nossas mentes depois de assistirmos “Foi apenas um sonho”. O filme, de direção de Sam Mendes, cujo título original é "Revolutionary Road" (Rua da Revolução) é uma adaptação do romance de Richard Yates e potencializa a crítica à mediocridade e ao “socialmente desejado e aceito” ou, em outras palavras, a essa máquina de hipocrisias e mentiras chamada sociedade moderna a que alguns se sujeitam e na qual morrem, infelizmente, para e em si mesmos. Denso e ácido, não é um filme apenas sobre uma determinada tragédia cotidiana, mas especialmente uma produção sobre o quanto angustiante e triste pode ser a vida de uma pessoa que queria ou quer mais, que reprimiu desejos e sonhos e que não vê saída além de sucumbir, resignar ou se acovardar, porque não tem coragem para mudar, destruir o que estava supostamente construído e tentar reconstruir de forma mais sincera o que quer que seja o seu desejo. Trata-se de uma história dura sobre a falência de um casamento mais ou menos doente desde o início - embora isso não esteja exatamente claro no filme para muitos e a morte de um sonho e tudo o que pode advir disso. Um dos temas principais do filme é realmente o medo - ou a covardia, para alguns - que acaba paralisando a tantas pessoas. Um medo de ousar, de arriscar, de viver e não saber onde isso dará - como se esse saber fosse possível.

"Freud descobriu que, toda vez que somos levados a desistir de alguma satisfação ou renunciar algum desejo, a raiva dessa renúncia se transforma em vontade de policiar e de reprimir os outros(...) Logo, frustrados zelamos pela prisão daqueles que não se impõe as mesmas renúncias."(C.Calligaris, 2001). O resultado disso é desastroso, pois numa espécie de quase vingança infantil desejamos prender - ou estar sempre nos esquivando - repreender, criticar, agredir e depreciar o outro por aquilo mesmo que nos sentimos presos, agredidos ou depreciados, seja no momento atual de nossas vidas, seja em algum momento outro ou mesmo desde a mais tenra idade. Ou pior ainda, por conta dessa raiva podemos não conseguir mesmo estabelecer vínculos genuínos de afeto com as pessoas, por querermos puní-las constantemente. De uma forma ou de outra, a raiva suscitada advém - muitas vezes até inconscientemente - de alguma forma de renúnicia, da não realização dos nossos desejos ou dos nossos sonhos e aspirações mais íntimas, em algum momento de nossas vidas. Resultado: uma tristeza imensa pela falência de nós mesmos, pelas relações falidas por inércia, pelas irrealizações e pela falta de (re)posicionamento diante de nós mesmos ou da vida e a aterrorizante insatisfação pela covardia, pelo medo ou acomodação em mudarmos nosso direcionamento. Tudo vira um círculo vicioso e doentio.

Todos temos sonhos, projetos, expectativas e perspectivas que, em vários momentos de nossas vidas não podemos realizar por uma gama infinita de razões. Mas diferente é não realizarmos coisas, não buscarmos mudar algo, alterar a ordem ou virar a mesa se necessário por questões de comodismo ou medo de sair do lugar confortável em que estamos. A vida é mútável. A vida é pulsante. Há horas na vida em que precisamos ter coragem, ousadia e até loucura, que seja. Não dá para maquiarmos a vida para todo o sempre, amém. E é exatamente sobre a linha que divide a aceitação dos desejos ou dos sonhos não realizados e a persistência em tentar realizá-los que “Foi Apenas Um Sonho” nos fala.“Foi Apenas um Sonho” é, penso eu, um protótipo do vazio existencial e das amarguras que, por vezes, tomam conta das pessoas de um modo geral, depois que o pano se encerra. Depois que as luzes se apagam no teatro, a vida continua lá fora, com todos os atos, encenações, trocas de figurino, monólogos, diálogos, loucuras, medos, sonhos, aspirações, decisões a tomar, novos sonhos a sonhar, novas perpectivas que estão sempre mudando e é preciso se reiventar sempre para enfrentar com coragem os imprevistos e mudar de rota caso seja necessário. Triste que isso seja tão raro.

Frank e April são um casal jovem com seus dois filhos na década de 50 e mesmo com todo o seu charme e irreverência, eles se vêem, cada um em seus recônditos mais íntimos, tornar-se exatamente o que não esperavam: um bom homem preso num trabalho de rotina e com muitos sonhos de naturezas diversas que não vêem possibilidade de realização e uma insatisfeita dona de casa que, exatamente pela insatisfação e frustração ao ver seus anseios mais íntimos não encontrarem suporte, está sedenta por realização e paixão. Determinados a mudar o destino, embora eles não consigam enxergar que precisam mesmo mudar a cada um internamente em primeiro lugar, eles tentam recomeçar. Porém, quando a tentativa vai para a prática, eles são levados aos seus extremos, exatamente porque a fonte de realização não é o que idealizamos fora de nós ou no outro – embora as idealizações e expectativas sejam inerentes e extremamente transformadoras, pois certo é que, "mudamos sempre (para melhor ou para pior) graças(...) ao amor de quem nos idealiza"(Contardo Calligaris, 2004) - um para fugir, seja qual for o preço, o outro para salvar tudo o que eles tem.

Enfim, o filme apresenta diálogos riquíssimos e faz, entre outras coisas, o espectador se estender para além do enredo do filme e pensar no que ele está fazendo de sua própria vida e questionar sobre o que precisa ser mudado antes que seja tarde demais. Além de transitar entre aspirações, sonhos e decepções, o filme mostra também, de forma convincente e real, a dinâmica dos sonhos particulares, muitas vezes postos de lado em nome de, por exemplo, uma vida falseada - seja lá em que sentido for - ou de um casamento falido ou ainda das máscaras que são colocadas pela vida fora, mesmo que isso custe quase tudo: realização pessoal, emocional e afetiva, dignidade, uma vida rica em afetos genuínos e alegrias, segundo os parâmetros de cada um, o que, na realidade, são os verdadeiros pilares da vida e são, exatamente por isso, os maiores desejos de todo ser, mesmo inconscientemente.

Os questionamentos são vários diante de um tema tão angustiante, tão desconfortável. Algumas pessoas vivem na ilusão da garantia das coisas. Gostam de saber que o mundo delas está “perfeito” ou pelo menos tentam a todo custo aparentar essa "perfeição", mesmo que o caos esteja instalado em todos os cantos disfarçada ou escancaradamente, corroendo silenciosamente a vida pulsante de todos os envolvidos; que são “felizes”, mesmo que isso não represente fielmente a realidade e precise de uma dose generosa de maquiagem, tinta e verniz. Gostam da falsa idéia de estabilidade e ordem, porque vivendo nesse "lugar quentinho e cômodo" não precisam questionar nada, nem a si mesmos; não tem de se lançar a gastar grandes energias para mudar isso ou aquilo, para reavaliar e transformar a própria vida de uma forma digna e verdadeira, para lutar por um novo amor, um novo emprego, mudar para uma nova cidade, acabar com um casamento que nunca trouxe realização pessoal e emocional a nenhuma das partes, partir para novos mares ou enfrentar algumas tempestades em nome da delícia de ser. Algumas pessoas são como o casal do filme, ou seja, querem garantias externas, vivem a querer fazer reformas, mudar os "móveis" e a "decoração" como se isso fosse o que caracterizasse a real e efetiva mudança da "casa", de uma situação ou da vida para terem a ilusão de se sentirem melhores, mais felizes ou realizados. E isso se mostra empobrecidamente triste e falido, tanto no filme quanto e, principalmente, na vida real.

Na vida não temos garantias. Temos um amontoado de expectativas, anseios, desejos, sonhos, idealizações, alegrias e tristezas, erros e acertos, conceitos capengas, feridas emocionais, carências, imperfeições, cicatrizes mal curadas, ambivalências e lutas (internas e externas). E, quem se dispõe a mais do que viver simplesmente, deve saber que a compra é feita do pacote completo. É claro que há pessoas que nunca farão nada e também há aquelas que farão de tudo - para o bem e para o mal. Mas, uma coisa é fato: sempre há o que pode ser feito, sempre há alternativas. O caminho que cada um escolhe implica vários fatores e isso, provavelmente daria outro texto, mas sempre há escolhas - para o alto ou para baixo, para um lado ou para outro, para o bem e para o mal, para além ou para aquém. Na maioria das vezes tateamos mesmo todos no escuro, escuro esse mais nocivo se for dentro de nós, pois aí podemos cair nas terríveis e tristíssimas armadilhas como as que caíram Frank e April e nas milhões de armadilhas que a vida nos apresenta, em vários sentidos. Mas não há garantias, há possibilidades. Possibilidades de vivências, experiências, aprendizado, crescimento e mudanças. Transformar essas possibilidades em potenciais realizações é uma outra questão, que está também ligada ao “quanto” desejamos realmente investir (libidinalmente) em nós mesmos, nos outros e nas coisas e, principalmente se queremos mesmo aquilo que desejamos. Viver somente, não basta.