domingo, 14 de março de 2010

OLHARES, VOZES E DEVANEIOS...

“Aonde quer que eu vá, eu descubro que um poeta esteve lá antes de mim.”(S.Freud) - Imagem: Getty Images



DESEJOS, REPRESENTAÇÕES, IMAGENS E PALAVRAS

Por Veruska Queiroz


Domingo último, dia 07 de março aconteceu no Teatro Kodak, em Hollywood, a 82ª edição do Oscar. Antes da cerimônia de entrega, aliás, bem antes para ser sincera, algo como uma certa ansiedade misturada a um confuso sentimento de não ter feito o dever de casa, tomou conta de alguns bons momentos de meus dias. Esse emaranhado de sensações era precisamente por saber que no ano anterior eu estive em todas as salas de cinema onde os filmes indicados ao Oscar estavam sendo exibidos e o mesmo não havia ocorrido esse ano. E mais, minha leve angústia também sinalizava que esse ano me atrasaria para fazer algo que me causa muita alegria, ou seja, após ver os filmes, poder postar minhas considerações a respeito dos mesmos fazendo, sempre que possível, a aproximação filmes/psicanálise. E foi em conversas riquíssimas durante essa semana que fui questionada sobre a relação direta, se houvesse uma, da psicanálise com o cinema. A partir de então, duas certezas se firmaram: minha paixão por cinema e filmes foi acrescida de novos e maravilhosos estímulos e minha paixão pela psicanálise se afirmou mais uma vez.

Por conta do contexto histórico, por obra do acaso ou por puro e simples percurso natural, no final do século XIX nascem a psicanálise e o cinema como formas, ao mesmo tempo, distintas e semelhantes em suas singularidades, de uma nova articulação entre o universo científico e o universo da fantasia, entre a ciência e a irracionalidade. Em 1900, Freud publica “A Interpretação dos Sonhos” e o cineasta Méliès lança “Cendrillon”. A luta particular de cada um, embora talvez estivessem mais juntos do que imaginavam ou queriam, se dava exatamente na tentativa de realizar essa possível/impossível fusão da ciência com o irracional. Se de um lado estava o cinema aguçando a curiosidade humana com suas novidades tecnológicas e uma proposta inovadora de alargamento da visão no campo da fantasia; de outro, estava a psicanálise propondo perturbadoramente a criação de um olhar para dentro - um olhar científico ao que não operava logicamente.
.
A relação de Freud com essa recém chegada - a indústria cinematográfica - foi basicamente de silêncio e críticas. Ao contrário do que se observa atualmente em relação aos psicanalistas, Freud torcia mesmo o nariz para a relação cinema e psicanálise. O silêncio só era rompido quando Freud se colocava a proteger a psicanálise da vulgarização e da banalização em vezes que o cinema procurava aproximar-se dela de alguma forma. Em 1924, Samuel Goldwin, ofereceu grande soma em dinheiro e tentou sem sucesso uma entrevista com Freud sobre a produção de uma grande história de amor fundamentada na psicanálise. Em 1926, Georg.W.Pabst consegue, mesmo com um Freud contrariado, estreiar o filme "Segredos de uma alma", sob a supervisão de Karl Abraham e colaboração de Hans Sachs. Para Freud, a linguagem das imagens cinematográficas seria incapaz de aproximar-se com legitimidade dos conceitos da Psicanálise. Inclusive, ele expõe isso claramente numa carta à Abraham: "O famoso projeto não me agrada(...) Minha principal objeção é que não me parece possível fazer uma apresentação plástica minimamente séria de nossas abstrações" (S.Freud e K.Abraham, 1969). Freud dizia que tinha se dedicado muito para transformar imagens em palavras e não iria, por preço algum, fazer das palavras, imagens. Inclusive, vem corroborar com essa rigidez, sua famosa frase: "sonho é o que o sonhador conta". Alguns estudiosos e psicanalistas dizem que essa tão conhecida oposição radical de Freud às imagens, talvez fosse somente mesmo por não suportar a idéia de ver a psicanálise sendo transformada em campo especulativo sem credibilidade, porque segundo esses mesmos, não há como negar que, pelo menos no campo dos sonhos - por mais que o paciente se utilize das palavras para descrevê-los ou fazer suas considerações - a primeira prerrogativa dos sonhos será sempre a das imagens com as quais o paciente sonhou. Um parênteses: sobre imagens e palavras nesse contexto, a polêmica é grande e como a psicanálise não é um campo de saber fechado e imutável, penso que novas formas de pensar a subjetividade é um desafio instigante e, no mínimo, bem interessante que a contemporaneidade nos oferece.

Bem, mas se Freud absteve-se de qualquer manifestação mais ou menos simpática em relação ao cinema nessa época, o mesmo não ocorreu com outros psicanalistas. Lou Andreas Salomé (amiga e discípula de Freud, mulher de Rilke e amor de Nietzsche) em 1913 escreve: "a técnica cinematográfica é a única que permite uma rapidez de sucessão de imagens que corresponde mais ou menos às nossas faculdades de representação". Apesar de um certo radicalismo de Freud em relação ao cinema, irremediavelmente ele faz com que nos aproximemos muito do mundo cinematográfico quando escreve sobre o sonho. Para Freud o sonho é, entre outras coisas, composto por imagens produzidas pelo inconsciente que contam a história - ainda que alterada pelas palavras - do desejo daquele que sonha.

Exatamente como acontece no sonho, o espectador se envolve na estória ocupando, ora o lugar de observador ora o de atuante. "No sonho e na fantasia, o sonhador é o ator principal, mesmo quando ele está representado por outra pessoa, por meio de mecanismos de identificação e essa dissimulação o leva a escapar à proibição, ocupando sucessivamente o lugar de sujeito e do objeto num enunciado"(A.L.Fernandes, 2005). Renato Mezan, em seu livro "Interfaces da Psicanálise" se refere ao sonho como sendo uma modalidade da satisfação alucinatória do desejo. Segundo ele, por ser o sonho uma realização de desejo e antes, do desejo de ver, ele é como um filme que se desenrola no interior das pálpebras.

Lou Andreas Salomé também afirmou que "o futuro do filme poderá contribuir muito para a nossa constituição psíquica". A incorporação de modelos sociais, culturais, familiares e, principalmente econômicos está, atualmente, intrinsecamente ligada à eficiência do controle social exercido pelos instrumentos e meios de comunicação. De forma não confrontativa, obviamente, o cinema - que é o nosso objeto de discussão aqui - como outros, realiza esse controle através do consumo e da fantasia de se obter determinados objetivos, alcançar determinados modelos, realizar todos os sonhos e principalmente todos os desejos. É como se ao invés de nos projetarmos em uma tela, ela se projetasse sobre nós. Podemos até arriscar a dizer que hoje o cinema não somente contribui, como disse Lou Salomé, mas, muitas vezes, constrói - mesmo que de forma distorcida - a nossa constituição psíquica. O desejo encontra-se então, de certa forma, virado em seu avesso, esmagado e coletivizado.

Pelo fato de o cinema dialogar de maneira tão singular com essa nossa constituição psíquica, penso que cinema e psicanálise podem se encontrar no tempo da fruição do próprio tempo, onde as emoções consigam transitar mais donas de si em suas próprias subjetividades sem que isso precise necessariamente fazer sentido nesse ou naquele outro campo do saber ou do pensar. Claro está que a psicanálise e a cinematografia não coincidem totalmente entre si , pois cada uma dispõe de campos, corpos teóricos e práticas de atuação bem diversas, mas afirmar que há uma completa e abismal diferença entre eles seria negar que um dos campos de atuação da psicanálise incide, muitas vezes, exatamente sobre a fantasia, material inclusive também de trabalho da indústria cinematográfica, que por si só, já se configura um tema de grande fascínio para a psicanálise.