sábado, 20 de março de 2010

ÚNICO E INSUBSTITUÍVEL

“Quero ser amado por e em tua palavra/ nem sei de outra maneira a não ser esta/ de reconhecer o dom amoroso/ a perfeita maneira de saber-se amado:/ amor na raiz da palavra...”(Carlos Drummond de Andrade) - Imagem: O Beijo - Auguste Rodin/ Google Imagens



PORQUE ERA ELE, PORQUE ERA EU, PORQUE ÉRAMOS NÓS.

Por Veruska Queiroz


“Quem é pois, aquele que eu amo e considero único e insubstituível? É um ser misto, composto, ao mesmo tempo, por essa pessoa viva e definida que se encontra diante de mim e pelo seu duplo interno em mim.”(J.D.Nasio,1997)

Mês passado, a Rede Globo de Televisão exibiu, em sua programação noturna, em horário considerado nobre, um programa inteiro dedicado a melhor entender e tentar desvendar os mistérios da Química do Amor: (http://g1.globo.com/globoreporter/0,,LS0-16627-79481,00.html). A neurociência emerge aqui com suas complicadas equações sobre as ligações dos neurotransmissores, sobre a compatibilidade e sobre todo o ‘ballet” dos hormônios: dopamina, serotonina, norepinefrina, vasopressina, oxitocina, endorfinas e todas as “inas” em atividade no nosso organismo.

Nesse sentido, alguns psicanalistas - penso que os mais conservadores ou em certo descompasso e desalinho com a contemporaneidade - a essa altura, podem querer pedir a minha expulsão do “paraíso” mas penso que, onde há possibilidades de desenvolvimento e aplicação de teorias, pesquisas, ensaios, técnicas e abordagens, independentes de qual campo do saber elas provenham, visando melhor explicar e entender a complexidade humana para que, a partir daí, haja melhores condições físicas e psíquicas futuras para uma qualidade de vida melhor, em todos os aspectos, todas as composições são válidas. Vejo muita arrogância e pretensão de certos campos do saber e de certos profissionais que, além de ultrapassarem o limite da sensatez, vão, inclusive, contra a vários pensamentos do próprio Freud que, em sua genialidade, não hesitava em dizer, por exemplo: “Na verdade, não sou de forma alguma um homem de ciência, nem um observador, nem um experimentador, nem um pensador. Sou, por temperamento, nada mais que um conquistador – um aventureiro, em outras palavras – com toda a curiosidade, ousadia e tenacidade características desse tipo de homem”, em uma carta a W.Fliess, em 1900. Nessa outra consideração, Freud mostra mais claramente o quanto um único campo de atuação não deve se fechar em si mesmo e o quanto é inegável que, um único campo do saber, sozinho e isolado, não dá conta de absolutamente nada: “Os poetas e os filósofos antes de mim descobriram o inconsciente; o que eu descobri foi o método científico pelo qual o inconsciente pode ser estudado.”

Bem, embora eu considere todas as perspectivas dos vários campos de saberes de suma importância, pois sou - ainda que bem modesta - uma legítima convicta discípula de Freud e, portanto, corroboro também com suas considerações nesse sentido; por uma questão de domínio teórico, técnico e contextual, além da grande paixão, vou procurar ater-me aqui ao enfoque psicanalítico das escolhas amorosas de todos nós, tentando elucidar como, porque e, principalmente, o que leva homens e mulheres, a escolherem uma determinada pessoa em especial, no universo de tantas outras, como “foco” – em psicanálise dizemos objeto, e esse não está condicionado à conceituação de objeto do senso comum - do seu amor.

Para tentarmos entender melhor esse assunto que causa grandes discussões científicas-psicanalíticas-filosóficas precisamos fazer um pequeno passeio inicial pelas postulações teóricas de Freud a respeito da importância das experiências infantis para somente depois nos enveredarmos pela vida adulta e as escolhas que faremos aí.

Segundo Freud, os acontecimentos e influências que estão na raiz de todas as doenças neuróticas pertencem não ao momento atual, mas à época da primeira infância e eis porque muitas pessoas também nada sabem sobre eles, muito embora apenas em determinado sentido. Nesse aspecto, ninguém contesta o fato de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inerradicáveis nas profundezas de nossa mente. Entretanto, ao se procurar averiguar em nossa memória quais as impressões que se destinaram a influenciar-nos até o fim da vida, o resultado é, ou absolutamente nada ou um número relativamente pequeno de recordações isoladas, que são, até certo ponto, freqüentemente de importância duvidosa ou enigmática. Isso significa, em última análise, que há uma realidade do inconsciente, elucidada pelo discurso do sujeito. Destes primeiros anos da infância, portanto, dependerão todo o resto da vida do sujeito. Os primeiros objetos de amor de uma criança são as pessoas que estão ligadas à manutenção das suas funções vitais que servem à finalidade de autopreservação, ou seja, sua alimentação, cuidados e proteção.

Portanto, a primeira escolha do objeto de amor que o sujeito faz recai sobre o modelo parental ou sobre pessoas que o reproduzam, então, de acordo com a psicanálise, a primeira escolha objetal de um ser humano é regularmente incestuosa. Daí irá surgir uma imensa luta e severas proibições para impedir que essa tendência infantil persistente se realize. Constata-se que, na puberdade, quando as pulsões sexuais, pela primeira vez fazem suas exigências com toda a sua força, os velhos objetos incestuosos familiares são retomados mais uma vez e novamente catexizados com a libido. Evidentemente, essas pulsões sexuais jamais deixam de seguir os mais primitivos caminhos e catexizar os objetos da escolha infantil primária com cotas de libido que são agora, muito mais poderosas. Nesse ponto, no entanto, defrontam-se com obstáculos que, nesse meio tempo foram erigidos pela barreira contra o incesto. Em conseqüência se esforçarão por transpor esses objetos que são, na realidade, inadequados e encontrarão um caminho, tão breve quanto possível para outros objetos com os quais, mais tarde, possam levar uma verdadeira vida sexual. Esses novos objetos, de maneira mais ou menos perceptível ou visível ainda serão escolhidos ao que representou psiquicamente para cada um de nós de maneira bem singular, os modelos dos objetos infantis.

Então, a escolha de objeto, que é tão estranhamente condicionada, deriva da fixação da representação dos sentimentos pelas figuras parentais e representam uma das conseqüências dessa fixação. No amor normal, apenas sobrevivem algumas características que revelam, às vezes de maneira inconfundível, o protótipo materno ou paterno da escolha de objeto onde houve o destacamento da libido da mãe ou do pai. Porém, em alguns casos específicos, a libido pode permanecer ligada aos progenitores por tanto tempo que os objetos de amor que serão escolhidos mais tarde terão uma marca indelével e podem facilmente se transformar em substitutos plenamente reconhecíveis das figuras parentais. Desse modo, podemos supor uma íntima ligação entre as condições de um amante para amar e seu comportamento no amor, ou seja, essa ligação decorre da constelação psíquica relacionada ao par parental.

“Aprendemos pela psicanálise, que a noção de algo insubstituível, quando é ativa no inconsciente, muitas vezes, surge como subdividida em uma série infindável: infindável pelo fato de que cada substituto, não obstante, deixa de proporcionar a satisfação desejada.” (S.Freud, 1996[1910]). Esse substituto, Freud sublinha como o ser que mais amamos. Portanto, para Freud, o amor remete a algo da ordem da repetição das imagos infantis. Em suma e, podemos concordar com Freud e Nasio, a pessoa amada deixa de ser apenas um ser que existe e vive exteriormente, para viver também no interior de nós, como uma presença, um objeto fantasiado que recentra nosso desejo e estrutura a ordem inconsciente. Das duas presenças, a viva e a fantasiada, é a segunda que domina, pois todos os nossos comportamentos, a maioria dos nossos julgamentos e o conjunto dos sentimentos que experimentamos em relação ao amado são rigorosamente determinados pela fantasia, porque irremediavelmente a pessoa amada é primeiramente uma instância psíquica. É precisamente aí que passamos a considerá-la única e insubstituível, pois idealizamos e supervalorizamos a pessoa amada que é envolvida com um emaranhado de imagens superpostas, cada uma delas carregadas de milhões de sentimentos: de amor, de ódio, de angústias, de ansiedades, de inseguranças e é fixada inconscientemente através de outra multidão de representações simbólicas, cada uma delas ligadas a um determinado aspecto seu que tenha marcado a outra pessoa em questão, que também terá, por sua vez, outra gama de imagens e representações para lidar.

Finalmente, segundo J.Lacan, esse é o amor paixão. É o amor como falta, incompletude. É o amor em sua vertente imaginária constituída de signos da ilusão inconsciente, em sua dimensão simbólica como sintoma que se dirige ao Outro e em seu estatuto real como aquilo que não cessa de não se inscrever.