sábado, 28 de agosto de 2010

SOU PLURAL

“Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves, dentro do coração, assim falava a canção que na América ouvi...”(Milton Nascimento) - Imagem: Google Imagens




É AMIZADE! E DA VERDADEIRA!

Por Veruska Queiroz



“Ah, esse fenômeno instigante, o das amizades que se mantêm independentes da convivência. Amizade anda de mãos dadas com a afinidade. Afinidade é um dos poucos sentimentos que resistem ao tempo e ao depois. Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos, as distâncias, as impossibilidades. Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação, o diálogo, a conversa, o afeto no exato ponto em que foi interrompido. Afinidade é não haver tempo mediando a vida. Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças. É conversar no silêncio, tanto nas possibilidades exercidas quanto nas impossibilidade vividas. Afinidade é retomar a relação no ponto em que parou sem lamentar o tempo de separação. Porque tempo e separação nunca existiram. Foram apenas oportunidades dadas (ou tiradas) pela vida, para que a maturação comum pudesse se dar. E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais a expressão do outro sob a forma ampliada do eu individual aprimorado. Afinidade é um dos combustíveis da amizade. E o mistério da amizade talvez resida no alívio que traz a existência de alguém que nos acolha. Acolher significa receber de bom grado, previamente, sem julgamentos ou resistências. Com os anos, vão se tornando escassas as amizades que atravessaram o terreno íntimo que lhes é próprio sem arranhões e sem mágoas, restando, como fruto, após ingentes experiências humanas e existenciais, apenas (e já é tanto...) a amizade. Amizade é o que resta da amizade. Se o que resta de uma amizade é amizade, então amizade é. Da verdadeira!”(Artur da Távola)


Há alguns dias li um texto lindo sobre amizade. Mais especificamente sobre amizade entre mulheres. Assunto incômodo para alguns, hipócrita para outros, um mero substrato de afirmação disso ou daquilo para os que não acreditam nem em si mesmos e ainda um assunto que cheira à falsidade, rivalidade e competição para quem talvez – e lamentavelmente na minha opinião - nunca tenha tido uma amizade verdadeira. Não posso falar sobre essas considerações ou pontuações e muito menos lançar juízo de valor sobre quem as defende, exatamente porque minhas experiências - salvo raríssimas exceções que se mostraram débeis, frágeis e, por isso mesmo, passaram como passa o tempo - foram e são muito bonitas e enriquecedoras. Fico, então, com o que essas minhas experiências e todas as minhas vivências nesse sentido me deram, ou seja, os laços de amizade e amor entre mulheres existem, são fortes, verdadeiros, capazes de irromper o tempo, a distância e o espaço, nos fazem mais conscientes de quem somos e de quem é o outro e trazem consigo imensos aprendizados, enormes alegrias, uma paz docemente reconfortante e uma felicidade indescritível.

Talvez minha vontade de falar sobre esse assunto que me toca o coração de verdade venha da imensa saudade que já há algum tempinho sinto de todas as minhas amigas que a vida se encarregou de “espalhar” por aí. Amigas de infância e adolescência, crescendo juntas, aprendendo juntas, estudando juntas no mesmo colégio por anos, fazendo ballet, jazz e sapateado juntas; com sonhos, experiências, projetos e realidades semelhantes, frequentando os mesmos ambientes sociais e culturais numa cidade charmosíssima do interior... com essas amigas lindas já caminho há 33 anos. Outras amigas chegaram quando também chegou minha vontade irrefreável de voar mais alto e por novas paisagens, de experimentar novos sabores, ver novas cores, atrelar minha alma a outras novas almas para agregar novos aprendizados àqueles que continuavam sendo regados sempre, me fazendo crescer constantemente... essas amizades já são cultivadas há 19, 20 anos. Nesse meio tempo, num outro jardim nasciam duas florzinhas que seriam outros dos meus grandes amores para a vida toda: a primeira floresceu há 18 anos e a segunda há 16 e com essas duas, para minha felicidade, veio junto a semente linda e forte que as gerou. Nessa mesma estrada, alguns quilômetros adiante, uma amiga também chegou falando de coisas lindas em dias gelados junto à lareira e há 14 anos acredito de verdade em anjos e querubins. Ainda outras amigas fizeram paragem no exato momento em que algumas mudanças - mesmo temporárias - se fizeram necessárias e, com elas também aprendo a ser melhor a cada dia, há 9 anos. E ainda há minha amiga-irmã/irmã-amiga que ganhei de presente antes mesmo de me saber um ser nessa viagem linda de viver e que, mesmo longe geograficamente permanece sempre perto através da presença em forma de amor, palavras lindas, apoio e afeto genuínos. Também não posso esquecer-me de todas aquelas amizades lindas, sinceras e enriquecedoras que chegam e vão embora ao sabor do vento ou chegam e permanecem durante um tempo determinado - porque tem mesmo de ser assim - com algumas missões que só compreenderemos mais tarde e deixam um rastro, principalmente, de ensinamento, beleza e crescimento. Também há aquelas que não são propriamente amizades no início e vão conquistando seu espaço com beleza, elegância, retidão de caráter, ética, brilho nos olhos, pureza de alma e de coração, sensibilidade e sinceridade. Aos poucos, o que era companhia eventual de uma ou outra vivência, se transforma também na mais bela e verdadeira amizade. Tenho me surpreendido lindamente com pessoas assim. E devo dizer que sou extremamente agradecida à vida e sou mesmo uma pessoa de muita sorte e privilegiada nesse sentido - algumas pessoas chamam isso de merecimento... vai saber...

Sim, tenho amigas verdadeiras e lindas. De todas as idades, de todos os lugares. O número exato do tamanho do meu amor, da minha devoção, do meu afeto, da minha inquietude, das minhas perguntas e respostas, das minhas imperfeiçoes, da minha lucidez, do meu silêncio e do meu grito, das minhas certezas e dúvidas, das minhas convicções e aprendizados, da minha loucura e da minha mais plena felicidade. E elas ocupam lugares especiais em meu coração. Lugares trabalhados, lugares conquistados, lugares cheios de muitas coisas vividas e compartilhadas... muitas alegrias, muitas risadas, muitas descobertas, sofrimentos divididos, angústias partilhadas, derrotas consoladas, vitórias aplaudidas, joelhos esfolados, corações partidos e recuperados, amores conquistados, sufocos em dias de prova, diante das peraltices da juventude ou diante daquela gravidez não programada que trouxe o amadurecimento para todas mais cedo do que o previsto, ansiedade nos dias daquelas festas, coração aos pulos diante das saídas, aniversários e bailes de reveillon. Liberdade e tranquilidade para expor as fraquezas e chorar, firmeza amorosa para os puxões de orelhas, generosidade para perceber as falhas e delicadeza, sensibilidade e sabedoria para apontá-las, compreensão dos erros, reconhecimento das qualidades e elogios sinceros. Expectativa da aprovação do vestibular, acompanhamento dos longos anos de sorrisos e lágrimas desse percurso e a felicidade das formaturas. Participação ativa e constante da vida profissional umas das outras, das realizações pessoais, do crescimento emocional, do aprimoramento espiritual, dos vários relacionamentos que começam e terminam e daqueles que chegam para ficar, dos casamentos, dos nascimentos e crescimento dos filhos, das separações e até das novas uniões em seus novos formatos, ou não. Ombro nas decepções e mazelas da vida, as quais, muitas vezes não escapamos; apoio nos momentos de dúvida, amparo nos momentos de dor, palavras e gestos nos momentos de solidão, colo nos momentos de crise existencial, compreensão nos momentos de insensatez, olhos brilhando, sorrisos e flores nos momentos de felicidade e aquela presença linda que, mesmo na ausência física diz: “eu sou sua amiga e estou com você e ao seu lado para tudo e para sempre e você pode contar sempre comigo.”

Não precisamos nos falar sempre, não precisamos cumprir nenhum ritual e não precisamos de comprovação de lealdade porque ela existe por si só como direção, causa e consequência dos próprios códigos da amizade. Não precisamos provar isso ou aquilo nem a nós mesmas nem a ninguém e não precisamos testar nosso legítimo afeto em nenhuma prova de fogo. Não temos motivos para competirmos umas com as outras, não encontramos sentido em nos rivalizarmos, não barganhamos sentimentos, não esfarelamo-nos em disputas e não temos absolutamente nenhum motivo para invejar-nos, pois entendemos a falta de maturidade e, não raro, a falta de inteligência e elegância que essa postura elucida e, principalmente, entendemos que cada vida é unica e belíssima em sua singularidade - cada pessoa tem suas metas, desejos, ambições e sonhos e, mesmo que alguns deles, às vezes, possam se assemelhar, essas são nuances imensuráveis e, por isso mesmo, fogem a qualquer inserção da inveja e de sua natureza vil e destrutiva. Não conseguimos entender - e certamente é motivo para um rompimento definitivo - a furada de olho, a puxada de tapete, o disse que me disse, a leviandade e a falta de comprometimento com a relação e com tudo o que diz respeito a ela e, evidentemente, compreendemos menos ainda o veneno ácido - às vezes lançado de forma sutil e velada, o que lhe garante o posto de imensamente mais repugnante, naturalmente - que faz proliferar o lodo fétido ao redor de quem o detém. Não admitimos, repudiamos e não perdoamos em hipótese nenhuma a falta de caráter, a deslealdade, a traição, a falta de escrúpulos e de ética e, decididamente, não conseguimos (con)viver com sorrisos amarelos, armaduras, escudos, dentes e garras afiados e espadas e lanças nas mãos. Não há densidade, não há cansaço, não há preguiça, não há nós e correntes, não há julgamentos, não há resistências, não há medos, não há sobresaltos, não há ataques nem defesas, não há manipulações, não há infantilidades mal resolvidas nem vitimizações pueris... não há senãos. Há somente e tanto, a amizade verdadeira. Somos amigas e isso preenche todos os espaços, lacunas, pensamentos, sentimentos e ações a despeito do tempo, das distâncias, dos adiamentos, das diferenças e semelhanças, do caminho seguido e de tudo o que aconteceu, acontece ou possa vir a acontecer nesse caminho.

Somos amigas não somente porque crescemos juntas ou coisa parecida, porque tivemos ou temos interesses ou atividades em comum; ou por termos níveis sociais e/ou econômicos e/ou culturais semelhantes ou porque as pessoas física e psiquicamente saudáveis tendem, de certa forma e em certa medida, a criar laços de afeto com seus semelhantes. Algumas dessas características isoladas ou mesmo todas elas juntas seriam absolutamente insuficientes para justificar o surgimento e, principalmente a manutenção da amizade entre mulheres e, não obstante, de uma natureza extremamente empobrecida. E, o mais importante, ainda não explicariam porque algumas mulheres tem e mantém suas amizades com outras mulheres e outras simplesmente não conseguem isso, a despeito de todo esforço que façam, às vezes, ao longo de uma vida inteira. Penso que a amizade ou não entre mulheres ou ainda, a facilidade ou dificuldade de algumas mulheres em fazerem e manterem amizades com outras mulheres se deem por uma série de razões mais ou menos entrelaçadas e interligadas, mas, certamente, uma das direções mais notáveis aponta para o fato de que somos amigas de outras mulheres porque aprendemos a amar, a aceitar sermos amadas e não temos porque ter medos, defesas, reservas, distâncias e desconfianças desse amor.

Numa perspectiva psicanalítica, poderíamos nos enveredar pelas questões e equações da afetividade, da feminilidade e da grande questão edípica. Sabemos que falar em feminilidade é falar também em falta, em desamparo e para que a feminilidade irrompa para além do “seu lugar” é necessário que ela arrisque movimentos para não sabe-se onde, que não haja uma "obsessão' em evitar a castração para que se possa aceitar correr o risco de esbarrar na angústia, deixar-se afetar e ir mais além. Na íntima relação entre feminilidade, castração e afetividade algumas mulheres simplesmente não conseguem esse “ir mais além”, pois o enfrentamento da extrema angústia que a castração traz em si não se faz possível. Em relação à castração, a mulher fica diante da inscrição indelével de uma perda que já se realizou e sua batalha – para algumas, muitas vezes já perdida – é reconhecer-se a si mesma. Para confrontar o desafio de torna-se mulher é imperativo elaborar simbolicamente o verdadeiro sentido de sua castração e poder assumi-lo. Dessa forma, a castração passa a ser vislumbrada como promessa quando a menina/mulher descobre, numa figura feminina - seja da mãe ou de quem cumpre sua função - um ideal de ego, com o qual possa se identificar. Quando evitar a castração é a única forma possível de se viver, a alteridade fica extremamente comprometida e não há a possibilidade desse atravessamento, desse reconhecimento de si mesma como mulher e, conseqüentemente, há impossibilidade de reconhecimento do outro e mais ainda, de uma outra mulher. Daí ser também impossível uma amizade verdadeira com outra mulher, pois um dos aspectos para os quais aponta a castração é exatamente a aceitação ou não da superioridade de uma rival (a mãe ou quem a representava) e a identificação posterior com ela. A afetividade, então, é deslocada ou transformada e, dessa forma, na vida adulta, pode ser que essa mulher, efetivamente não consiga nunca criar laços profundos, verdadeiros e duradouros com nenhuma mulher.
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P.S.: A todas as minhas amigas verdadeiras, lindas e inigualáveis!!! Amo todas vocês!!!
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"A gente não faz amigos, reconhece-os."
(Garth Henrichs)