segunda-feira, 13 de abril de 2009

E AGORA, JOSÉ?

“A crítica expressa a própria alma de quem a exerce. Tanto a mais elevada quanto a mais baixa forma de crítica são uma espécie de autobiografia.” (O.Wilde) - Imagem: Getty Images




NO MEU LUGAR, O QUE VOCÊ FARIA?

Por Veruska Queiroz



Já há algumas semanas venho pensando muito sobre uma questão que parece ter caído no senso comum e é utilizada em diversos discursos por toda gente que, vez ou outra, quer evocar um senso de tomada de consciência, quer sobre si mesmo, quer sobre um outro. Olhando por uma perspectiva de civilidade e convivência, a questão nos faria deparar frontalmente com a ética. Com a ética pessoal, com o senso de justiça e com o senso de humanidade, onde somos todos confrontados com a dura verdade e realidade de que somos todos seres passíveis de enganos, erros, acertos, momentos mais ou menos lúcidos na vida, momentos de carência ou de superação emocional, etc. E, para além desse blá-blá-bla, nos faria deparar também e principalmente com a possibilidade de nos colocarmos no lugar do outro para tentarmos responder a uma pergunta bem mais complexa do que à primeira vista poderia parecer: “o que você faria se estivesse no meu lugar?”

Todas essas questões andam povoando meus botões internos desde que vi o filme “O Leitor” de Stephen Daldry (o mesmo de "As Horas"), baseado no livro de mesmo nome de Bernard Schlink que, só por curiosidade, é jurista de formação e professor de direito público e de filosofia do direito. A espinha dorsal do filme retrata o julgamento de algumas mulheres nazistas que foram guardas da SS em campos de concentração no final da guerra e foram responsáveis por muitas mortes. Além da questão da Gestapo e da culpa dos alemães, vemos também a complexidade da natureza humana, o conteúdo contextual e histórico da justiça, o dever moral de agir diante de uma injustiça, o direito à defesa e assim por diante.

Em determinado momento do filme - e é precisamente aí que minhas questões tomam corpo - a personagem de Kate Winslet, sendo julgada num tribunal, pergunta aos juízes: “no meu lugar, o que você faria?”. O crime em questão não era o de ter se alistado na Gestapo 'por precisar de emprego', mas ter trancafiado 300 prisioneiras judias dentro de uma igreja em chamas para impedí-las de fugir. Questionada de forma massacrante sobre o porque ela havia deixado tal monstruosidade acontecer sem fazer nada, ela responde: “Meu dever era manter a ordem”. E acrescenta: “Eu não sabia o que fazer”.

No lugar dela, o que você faria? Obedeceria ordens externas ou as contrariariam em nome de algo maior que viesse a atender alguma questão interna, qual como ética, valores morais e/ou humanidade? Transportando para os dias atuais, poderíamos perguntar: "Quando o bicho pega, como você reage? Como é, de verdade, seu caráter, sua essência? Você sucumbe, vende a alma ao diabo, abraça o capeta e atende à normas externas ou às suas necessidades individuais por medo, covardia, em prol de sua segurança e estabilidade ou qualquer coisa semelhante ou você age de acordo com sua consciência e valores morais e éticos?" A questão é perturbadora para alguns. Hoje, seríamos todos resistentes; seríamos todos heróis. É fácil julgar fatos passados através das lentes já estabelecidas pela posteridade, sobretudo quando os vencedores estão supostamente do lado, digamos, do bem. É fácil analisar situações dessa ordem sob uma ótica unilateral, acusar, julgar e apontar os erros sem ter de pensar em todas as vertentes, sob todas as óticas, sem assumir um verdadeiro comprometimento com todos os reais fatos de todos os lados. Mas se você estivesse lá, no olho do furacão, acuado, ameaçado, emocionalmente fragilizado, o que teria feito? Nada? Tudo? Tentaria fazer de outro jeito? Escolheria um outro caminho? Obedeceria ordens externas mesmo tendo de se prostituir moralmente, de lançar sua dignidade na lama ou atenderia a valores morais e éticos humanamente sólidos e elevados? Se pudéssemos nos transportar mentalmente para a pele da personagem naquele dado momento, sentindo todas as suas dúvidas e medos, fragilidades e inseguranças, mas em plena consciência e capacidade de discernimento, o que teríamos feito? Teríamos seguido o caminho A ou o caminho B?(ou o C, D ou E)... Seríamos defrontados - e confrontados - por nós mesmos, em nossos valores morais e éticos, em nosso lado A ou em nosso lado B?(ou C, D ou E)...

Só podemos julgar - julgar aqui no sentido de tentar formar juízos de valores próprios para melhor entender algo e não no sentido de condenar um outro - um ato, um discurso, uma situação ou uma pessoa quando nos dispomos a pensar bilateralmente, quando conseguimos nos despir da falsa moralidade, quando conseguimos ser honestos com nossa própria condição de ser humano igual a de todos os viventes, quando conseguimos sair de trás de nosso orgulho, de nossa pose muito bonita para fotografia e podemos nos sentir “como se”. Como se estivéssemos vivendo sob as mesmas condições ou sob condições semelhantes, com a mesma história de vida, com as mesmas dores, sob as mesmas condições sociais, econômicas, culturais ou emocionais, sob as mesmas oportunidades ou a falta delas, como é o caso do filme.

Só se pode julgar a história pela lente da história, assim como só se pode julgar algo ou alguém com real justiça e moral pela lente da própria estória desse alguém. Um ato isolado não é uma pessoa assim como um fato sozinho não compõe nenhuma história. Sempre há dois ou mais lados, duas ou mais visões, sentimentos e percepções de uma mesma estória, de um mesmo fato, de um mesmo acontecimento. Fugir ou lutar - e aqui fugir e lutar vistos e compreendidos sob diferentes formas e não somente nas formas físicas de se apresentarem - são as duas condições psíquicas que são colocadas lado a lado, em frações de segundos, quando uma decisão precisa ser tomada. É de acordo com questões fundamentais que organizam a constituição do sujeito transmitidas ou não durante a sua infância - e suas representações psíquicas - tais como amor, afeto genuíno, cuidados, reconhecimento, transmissão de segurança em si mesmo e no outro, formação da auto confiança, da auto estima, do senso crítico saudável, maior ou menor sentimento de mais valia, realizações, frustrações, conquistas e rejeições, que essa decisão será tomada. Todas essas questões da infância unidas às vivências de cada um ao longo dos anos é que desenharão o cenário de toda uma vida de um sujeito: seu caráter, seus preceitos morais e éticos, sua capacidade ou não de criar vínculos de afeto genuíno e amor com outras pessoas, sua capacidade de confiar em si mesmo, nas outras pessoas e no mundo, sua forma de viver com questões fundamentais da vida como lealdade, honestidade, hombridade, integridade, civilidade.

Enfim, lutar ou fugir, de forma honrada e bonita ou de forma desonrada e horrorosa irão depender de como um sujeito se constituiu ao longo de sua vida, desde o seu nascimento. E aqui, querendo ou não, gostando ou não, não há como fugir dessa realidade. E que se levantem todos os deuses do Olimpo...

Deixo a pergunta da personagem ao juiz em seu julgamento: “No meu lugar, o que você faria?”