quarta-feira, 13 de maio de 2009

APRENDIZADO E CRESCIMENTO

“Ostra feliz não faz pérolas” (Rubem Alves) - Imagem: Google Imagens




DE DENTRO PRA FORA, DE FORA PRA DENTRO.

Por Veruska Queiroz


Pensei em escrever algo temático e profundo, algo de vezes e vozes, algo de pensar e de quietude, algo de amarelo, dourado e violeta, algo que me fizesse compreender o que ainda não compreendo, que me fizesse calar quando tenho vontade de falar e que me fizesse gritar o que ainda só consigo elaborar no silêncio.
Também pensei em escrever para traduzir minhas alegrias doídas e minhas angústias alegres, palavras não ditas e gritos que jamais deveriam ser gritados. Mas, tal qual aquele dia em que vamos ao nosso analista dizendo que "não temos nada para falar" (só quem faz análise saberá com exatidão do que eu estou falando), minha semana começou com "nada para falar". E, somente para não deixar escapar esse precioso detalhe, são nesses dias em que "não temos nada para falar" que, geralmente, se dão grandes sessões, excelentes insights ou maravilhosos e enriquecidores embates, nesse caso, se não se tratar de uma situação específica de análise. Mais um parênteses: sobre essa coisa de só poder falar sobre algo quem já passou efetivamente por esse mesmo algo ou algo similar que citei acima em relação à analise, Artur da Távola (1986) faz interessantes considerações no texto “Só sabemos o que já sentimos” dizendo que algumas pessoas por serem imaturas, arrogantes, egoístas e covardes acham que podem se meter a saber e a julgar sobre aquilo que nunca sentiram e nunca viveram, quando, na verdade ninguém pode saber o que ainda não sentiu e o que não vivenciou. Como dizia uma amiga, essa é para o dever de casa... Mas, voltando as minhas questões, essa semana nasceu assim para mim: persistia a sensação de que eu não tinha nada para falar, nenhum assunto interessante que eu considerasse consistente para a produção de um texto. E assim as horas irrompiam meu tempo e meu espaço... Algumas pessoas que me conhecem visceral, profunda e verdadeiramente talvez teriam a dizer numa hora dessas - caso fossem perguntadas - que, para quem fala pelos cotovelos como eu, deveria mesmo acontecer de eu sentir, em alguns momentos, que eu não teria nada para falar por ter tanto a dizer... E a coisa toma seu revés: é exatamente por ter tanto a dizer que, às vezes, acho que não tenho nada para falar, me emudeço em mim mesma e as palavras parecem não encontrar saída, porque elas talvez estejam ainda meio desajeitadamente sendo preparadas no compartimento dos sentimentos e das idéias e ainda precisem de um pouco de tempo, de silêncio, de compreensão e de aninhamento. E, se as minhas palavras ainda precisam de um pouco mais de preparo, assim como também ainda precisam de preparo minha carne dura, meu “miolo mole”, minha alma inquieta e meu coração desassossegado, hoje elas estarão se fazendo por outras pessoas...


"...Há impossibilidade de ser além do que se é. No entanto eu me ultrapasso, sou mais do que eu, quase normalmente. Com todo perdão da palavra, eu sou um mistério para mim ...É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei, mas não posso dizer, tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar, não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo... Mas acredito que o que verdadeiramente somos é aquilo que o impossível cria em nós. E se me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar.”
(Clarice Lispector- A Paixão segundo G.H, 1993 e Perto do Coração Selvagem, 1999)


“Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê, quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo : ‘Fui eu ?’
Deus sabe, porque o escreveu.”
(Fernando Pessoa – Não sei quantas almas tenho, 2005)


“Tinha vantagem não saber do inconsciente, vinha tudo de fora, maus pensamentos, tentações, desejos. Contudo, ficar sabendo foi melhor, estou mais densa, tenho âncora, paro em pé por mais tempo. De vez em quando ainda fico oca, o corpo hostil e Deus bravo. Passa logo. Como um pato sabe nadar sem saber, sei sabendo que, se for preciso, na hora H nado com desenvoltura. Guardo sabedorias no almoxarifado.”
(Adélia Prado – Quero minha mãe, 2005)


“Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.”
(Paulo Leminki – Distraídos Venceremos, 1995)


"Diferente não é quem o pretenda ser. Diferente é quem foi dotado de alguns mais e de alguns menos em hora, momento e lugar errado... Porém, lugar errado para os outros, que riem de inveja de não serem assim. E de medo de não aguentarem, caso um dia venham a ser. O diferente paga sempre o preço de estar -mesmo sem o querer- alterando algo, ameaçando rebanhos, carneiros e pastores. O diferente aguenta no lombo a ira e a inveja do irremediavelmente comum e mediano. E, por causa disso, muitas vezes sofre e chora. Mas, por ser diferente, entende a pobre alma desses seres e segue adiante.
Aliás, adiante é onde sempre está o diferente. Diferente é o que vê mais longe do que o consenso. O que sente antes mesmo dos demais começarem a perceber. Diferente é o que, às vezes, diz sempre na hora de calar. Cala sempre nas horas erradas... E procurando ser, consegue ser muito mais. A alma dos diferentes é feita de uma luz além. A estrela dos diferentes é... diferente! Não mexa com o amor, (com o ódio, com o desprezo e/ou com a indiferença) de um diferente. A menos que você seja suficientemente forte para suportá-los depois"
(Artur da Távola - O Diferente, 1977, Grifos meus)


“Deste modo ou daquele modo.
Conforme calha ou não calha.
Podendo às vezes dizer o que penso,
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas,
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à idéia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras
Nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a Natureza produziu.
E assim escrevo, querendo sentir a
Natureza, nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a Natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso...”
(Fernando Pessoa – O Guardador de Rebanhos/ XLVI, 2005)

“Para quem o chama de complicado, como explicar que a complexidade é rica? Não ligue portanto para aqueles que defensivamente dizem: ‘Puxa, como você é complicado’. Quem o faz talvez esteja temendo caminhar ao seu lado pelas vias de sua grandeza de espírito, tão grande que o confundiria. É mesmo mais fácil escolher um só caminho e acreditar nele. Mais fácil e mais covarde...
Complicação uma ova! Ali estão as luzes de estrelas de primeira grandeza chamadas inteligência, sensibilidade, percepção aguçada, perspicácia e simplicidade, capaz de ver vários caminhos e não um só. Ali estala (instala? entala?) um tal respeito pela emoção e pela vivência do próximo que, às vezes, tudo se esconde na meia frase, na certeza da impossibilidade de certas explicações, pois há pessoas que nunca as entenderiam e na percepção que não se define em conceitos nem em palavras, pois o que se percebe é o que sintetiza em si mesmo.
Ser complicado é saber exatamente em que ponto e medida o outro não vai poder (jamais) perceber o que está em nós, e não se ofender com ele por isso. Ser complicado é ter força para aguentar o máximo da incompreensão e da injustiça por saber da impossibilidade do outro em se estender, em ser emocionalmente inteligente e forte, sem revidar esse mesmo que o fere.
Ser complicado é, de certa forma, se defender do medo (que depois se transformará em raiva ou ódio e depois em mágoa), quando vislumbrarem tudo (nada?) o que (não) são.
Ser complicado é, enfim, estar aberto para o mundo, conseguir vê-lo e ver as pessoas e todas as circunstâncias da vida sem o ódio e a raiva com que se é visto, por colocar instâncias inteligentes ou sensíveis ou puras demais onde as pessoas querem menos, fazem menos e são menos, por comodismo, fraqueza, covardia ou mesmo burrice.
Ser complicado é aceitar o peso de ser diferente porque capaz de ir além, capaz de lutar por coisas que poucos e raros tem coragem para lutar e, por isso, de ameaçar a ordem, de fazer pensar e, pensando, desarrumar, desconstruir para construir coisas novas, de questionar e, assim forçar respostas e por causa delas rearranjar atitudes, pensamentos e emoções.
Quanto menos inteligente, menos caminhos, menos flexibilidade, menos mudanças, menos alterações da ordem porque mais falsas certezas sobre menos coisas. Portanto, seja complicado e, por consequência, verdadeiramente inteligente: tenha menos certeza sobre muito mais coisas...”
(Artur da Távola - Simplificando a complicação, 1986)

“ O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E, de vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascer deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo... (...)
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos.”
(Fernando Pessoa – O Guardador de Rebanhos/ II, 2005)

"O ímpeto de crescer e viver intensamente foi tão forte em mim que não consegui resistir a ele. Enfrentei meus sentimentos. A vida não é racional, ela é louca. E eu não quero viver somente comigo mesma. Quero paixão, prazer e barulho. Quero ouvir música rouca e ver rostos. Quero morder a vida e ser, em certa medida, despedaçada por ela. Eu estava esperando e esta é a hora da expansão, do viver verdadeiro. Todo o resto foi uma preparação. A verdade é que sou inconstante e sempre preciso de estímulos, perguntas e desafios em muitas direções. Fiquei docemente adormecida por alguns séculos e entrei em erupção sem avisar."
(Anais Nïn – Loucura, 1990)


“Por tanto amor, por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz, manso ou feroz
Eu, caçador de mim
Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar longe do meu lugar
Eu, caçador de mim
Nada a temer
Senão o correr da luta
Nada a fazer
Senão esquecer o medo
Abrir o peito à força
Numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Longe se vai sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim
Nada a temer
Senão o correr da luta
Nada a fazer
Senão esquecer o medo
Abrir o peito à força
Numa procura
Fugir às armadilhas da mata escura
Vou descobrir o que me faz sentir
Eu, caçador de mim”
(Milton Nascimento – Caçador de mim)

“Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre...”
(Caio Fernando Abreu - Limite Branco, 2007)

"Quanto a mim, tenho que lhes dizer que as estrelas são os olhos de Deus vigiando para que tudo corra bem. Para sempre. E, como se sabe, ‘sempre’ não acaba nunca."
(Clarice Lispector – Fragmentos, 1999)

segunda-feira, 4 de maio de 2009

CORAGEM E OUSADIA.

"Nossos complexos são a fonte de nossa fraqueza, mas com freqüência são também a fonte de nossa força."(S.Freud) - Imagem: Psiconet/ Consultório e Divã de Sigmund Freud



NO MEIO DO CAMINHO TINHA UM DIVÃ
Por Veruska Queiroz


Bem, primeiramente preciso me desculpar pela ausência na semana passada. Numa outra oportunidade tentarei elaborar algum texto sobre as experiências vividas externa e, principalmente internamente que me levaram, como sempre, a (re)inventar a mim mesma, mesmo num curto – para alguns - período de uma semana. E, por conta disso e de mais um monte de coisas, não coincidentemente claro, fui assistir ontem ao filme “Divã” com direção de José Alvarenga Jr. (o mesmo de “Os Normais”) adaptado da peça homônima, ambos baseados no livro de mesmo nome de Martha Medeiros. Tentando elaborar meus sentimentos e minhas impressões sobre o filme, fiquei pensando se o mesmo entraria somente na categoria de uma comédia, que é o tom que se pretende passar quase o tempo todo (e, diga-se de passagem, cumpre belíssimamente esse papel e as risadas – ótimas risadas - são do começo ao fim) ou poderia ser também um drama, pois, ao telespectador mais perspicaz e sensível, o filme faz pensar sobre o nosso cotidiano, às vezes, tão somente vivido de forma quase automática, onde não paramos para nos perguntar - muitos porque “não podem” - o que realmente nos move, se somos felizes ou não, se está tudo bem mesmo (sem máscaras, meias verdades ou mentiras veladas) com nossa carreira, nosso casamento, nossa relação com nossos filhos, namorados, amigos, etc... Um parênteses: quando digo que muitos “não podem”, não poder aqui assume o sentido de não se dar conta conscientemente "de ver com olhos de enxergar" - como diz o Rubem Alves - o tanto de poeira acumulada e jogada para debaixo do tapete, de não dar conta de parar para fazer honestas reavaliações da própria vida, das reais realizações pessoais e emocionais ou não, dos sonhos verdadeiros da alma. Enfim, sabemos que muitas pessoas vivem com o piloto automático ligado, vivendo uma vida vazia, triste e medíocre por covardia e medo de ter de olhar para dentro e descobrir, muitas vezes, alguns pedaços de pão bolorento e ter de fazer alguma coisa com isso. A estória do filme é leve, poética, divertidíssima e, ao mesmo tempo, é densa e devastadora, embora isso não fique explícito a um olhar mais pragmático e menos atento. Na verdade, para um certo grupo de pessoas - aquelas que, embora precisem, nunca terão coragem suficiente para dar “aquela virada” na própria vida; o filme soa como uma certa libertação e redenção: através dos conflitos e questões existenciais da personagem, há a possibilidade de se confrontar com os próprios fantasmas, mesmo sequer cogitados e jamais confessos e com a possibilidade de se desejar realmente querer ser feliz.

Em meu último texto falei exatamente sobre essa possibilidade da felicidade indicando que, dentre outras coisas importantíssimas, ela seria um componente intrínseco constituída de vários momentos de alegria que cada sujeito pode ou não carregar no íntimo de sua alma e a chave para todo o mistério estaria, portanto, dentro de cada um de nós e que deveríamos, para tanto ter uma dose generosa de ousadia e coragem. Segundo nos aponta a própria experiência de se viver, a felicidade acompanharia o sujeito que aprendeu a conhecer melhor a si mesmo e, por conseqüência, ao outro, e Escolheu (assim mesmo, com letra maiúscula), SER feliz, buscando realizações pessoal e emocional, acima de tudo, com capacidade para amar e trabalhar que, segundo Freud, seriam as duas condições primordiais para o equilíbrio psíquico e a saúde mental.

Mercedes (a maravilhosa Lília Cabral, que também protagonizou a peça e é co-roteirista do filme) é uma mulher “padrão” e "normal", casada com um homem também “padrão” e "normal", artista plástica com recente exposição de suas obras, professora particular de matemática que teve uma bem sucedida carreira, com dois filhos crescidos e no auge dos 40 e alguns anos decide que precisa de auto-conhecimento. Por mais algumas razões desconhecidas para ela a princípio, decide procurar um analista - daí o título do filme (antes também do livro e da peça). Mercedes resolve se (re)inventar (lembram que eu disse no início do texto que não era por coincidência que eu havia ido assistir ao filme?), embora tenha “certeza” de que esteja tudo bem com sua vida, afinal, pensava ela, ela tinha o que a grande maioria “normal” das pessoas - que, não raro se acomodam e fingem ser felizes - tem ou desejam: nenhuma grande tragédia na vida, uma situação vivencial aparentemente estável em alguns aspectos, um bom marido que era também um bom pai e um bom homem, sexo mais ou menos bom, mais ou menos muito de vez em quando (em alguns casos, na vida real, sexo pode até não existir), filhos com saúde, "bem criados" e aparentemente sem problemas, realização profissional, uma boa casa, grana... O que mais uma pessoa poderia querer? O que estaria errado? Essas são algumas das questões que o filme traz à tona e é aí que ele se desenrola.

Retomando novamente meu último texto, querer (que no exposto acima está mais ligado à necessidade) é diferente de desejo, dentro da perspectiva psicanalítica, como já vimos. No caso do filme, "desejo" talvez possa ser traduzido com a ida da personagem por conta própria ao analista, tendo coragem de olhar com honestidade para si mesma e para sua vida que não a fazia feliz e pelas mudanças que, a partir disso, ela assumiu - com muita dignidade - fazer. O "desejo" é de ordem puramente psíquica e subjetiva e aqui lembro-me do Contardo num texto em que já o citei “Você quer mesmo ser feliz?” onde ele traz a questão de que “algumas pessoas nem sempre querem aquilo que desejam” (Contardo Calligaris, 2008), mesmo que isso lhes custem o preço mais alto de uma existência: a prisão da alma, a triste e dolorida condição de não se ter coragem suficiente para desbravar as próprias trilhas internas, romper com o que está falido há tempos e buscar a si mesmo e a felicidade, seja ela o que for, quem for, como for e onde estiver. O que a corajosa Mercedes faz é ir ao e de encontro a si mesma, (re)descobrindo-se, (re)inventando-se, libertando-se, criando possibilidades mais honestas - e por isso mais verdadeiras e belas - de sentir-se de verdade, de ser feliz de verdade, de viver de verdade. A verdadeira estória dela, se fosse real (se bem que podemos reconhecer várias pessoas que conhecemos na pele da personagem) começaria, na realidade, penso eu, quando o filme termina, pois, repetidamente citando Fernando Pessoa (2005): “A felicidade surge de um desassossego da alma.”  A atitude do sossego e do repouso - principalmente sobre si mesmo, sobre o outro e sobre uma vida que se imagina confortável - pode até ter, em certa medida, suposta e ilusoriamente alguns ingrediente do que se quer - a todo custo - chamar felicidade, mas é tão somente máscara para esconder o feio e deformado, além de ser também repugnantemente covarde e triste, muito triste . E o pior, com o passar do tempo - e se se exceder só um pouquinho além da medida (onde a maioria finge não perceber e não ver), acaba por criar irreversíveis escaras... grandes, feias, sujas e fétidas escaras.

“(...)Eu prefiro na chuva caminhar
que, em dias tristes, em casa me esconder.
Prefiro ser feliz, embora louco,
que me conformidade viver.”
(Martin Luther King, 1963)


Ser feliz de verdade implica arriscar, mudar, transformar, se (re)criar, se (re)inventar, alterar a ordem, trilhar matas virgens da alma e novos caminhos. Implica novas posturas, novas formas de ser e estar no mundo. Implica coragem e ousadia. Se não temos isso, temos muito pouco ou nada. E, para nos (re)inventarmos, nos (re)criarmos e promovermos uma verdadeira transformação, na direção de mais respeito, comprometimento e cuidado com a própria vida, não podemos fechar nossos olhos nem tapar nossos ouvidos. Não podemos nos esconder atrás do conveniente e confortável, não podemos barganhar a própria vida, não podemos vender nossa dignidade, não podemos nos repousar sobre nós mesmos e o que é pior, sobre um outro ou sobre uma situação. Não podemos deixar que as escaras fétidas tomem conta de sua alma. Ao contrário, faz-se necessário termos coragem, ousadia e hombridade para nos embriagarmos de vida, de movimento, de desassossego, de transformação, de alegria, de louca felicidade íntima. Daí temos que ser feliz - segundo o parâmentro de felicidade de cada um - depende unicamente de nós, pois a felicidade - ou a alegria, como queiram - como é intrínseca, é uma escolha. Ela não é um destino, ela é o caminho. E escolha implica comprometimento e responsabilidade. Comprometimento e responsabilidade conosco, com os quais nos relacionamos e com a vida que nos cerca, com tudo o que ela evoca. Mas, se ainda assim precisarmos ser encorajados de alguma maneira com o tumulto que isso pode provocar em nossas veias e artérias fiquemos com a letra de “Balada do Louco” que Rita Lee, anos atrás musicou com Arnaldo Batista, para reflexão: “Dizem que sou muito louco por pensar assim/ Se eu sou muito louco por eu ser feliz/ Mas louco é quem me diz e não é feliz, não é feliz(...)/ Se eles são bonitos, sou Alain Delon/ se eles são famosos/ sou Napoleão(...)/ Se eles têm três carros/ eu posso voar(...)” e assim encerra: “Sim sou muito louco, não vou me curar/ já não sou o único que encontrou a paz/ Mas louco é quem me diz e não é feliz/ Eu sou feliz.” (Os Mutantes, 1972)